Antessala da (3ª)Idade

Tenho percebido, ultimamente, um aumento das minhas idas a consultórios médicos e laboratórios de exames clínicos, na proporção da diminuição das minhas atividades sociais, sobrepondo-se, entretanto, as primeiras às segundas, em variedade (médicos e laboratórios diferentes, versus mesmos programas sociais). Coisas da idade...

Sendo assim, optei por não inibir meu ímpeto socializador, nas seguidas salas de espera. E tome conversa, para acompanhar o chá de cadeira frio e amargo, que tão bem justifica a condição de “paciente” da clientela. A conversa até flui, independentemente do assunto, quando os interlocutores se equivalem na relação audição e oratória, sem necessidade de equivalência ou similitude social, econômica, cultural, política(?), etc. Apenas quando há sobreposição ou inibição do apetite de falar, o que também não é raro, a conversa não se estende, se esvai precocemente, antes mesmo do chamado de um dos dois, no painel indicativo da consulta/exame.

Ontem fui ao laboratório, fazer um exame de “Spect com Trodat”. Emília foi comigo, para pronunciar esse nome difícil na recepção e me lembrar dos remédios que tomo, quando do preenchimento do formulário de praxe. Brincadeira, a companhia da minha mulher e companheira de 37 anos de comunhão de vida, sempre me é prazerosa.

Assim, logo nos deparamos com duas senhoras, que acompanhavam o esposo de uma delas, num exame de cintilografia. Conversa vai, conversa vem, entre nós quatro, enquanto o cidadão era atendido e enquanto não me chamavam, descobrimos que as senhoras eram irmãs e moraram no, então, Conjunto Habitacional Prefeito José Walter, no mesmo período em que morei, por toda a década de Setenta, estendendo-se pela de Oitenta. Moravam na Segunda Etapa, Av. J, próximo à Igreja. Fiz referência à churrascaria Realce e elas disseram que era de um irmão delas.

Até então, estávamos empatados, nem elas lembravam quem eu era, muito menos eu as conhecia. Até quando falaram da fatalidade da morte de um dos seus irmãos, acometido de um câncer de pâncreas, chamado Aprígio. Num estalo, lembrei:

- Eu conheci, era irmão do Pedro?

- Sim, Pedim é nosso irmão!

Lembrei da antiga notícia de uma fatalidade, que eu soube ter se abatido naquela família, embora não lembre a fonte. Mesmo assim comentei, num ar de consternação:

- Ele faleceu (me referindo ao Pedro), né?

- Nãaoo! Pelamordedeus, não mate o Pedim!

Caramba, esse é o segundo conhecido meu, que permanece morto, por tanto tempo, no mundo dos boatos (ou fake News, na terminologia alienígena, tão em voga), e ressuscita, pelas graças da verdade (o primeiro foi nosso grande cantor e compositor zewaltense Nonato Natureza, morto nos anos noventa, hoje vivinho no Juazeiro do Norte)!

Fiquei um tanto desconcertado e esclareci, que essa era a informação que, há muito, chegara no seio da minha família. Mas tentei minimizar a gafe, externando minha satisfação com o fato do irmão delas estar vivo, gozando de boa saúde, inclusive, em pleno exercício de suas atividades profissionais de advogado.

Tudo esclarecido, continuamos o bate-papo. O Zé Walter continuou sendo principal tema. No entanto, numa breve referência aos exames que cada um dos pacientes ali íamos fazer, comentei que o meu o Plano de Saúde não cobre e que era bem caro. Aí, uma das irmãs, em tom descontraído, comentou: “ah, mas pra você não é caro, ora”. Lembrei de uma coisa que o papai sempre repetia, nos nossos churrascos dominicais, emocionado e já inebriado, por moderados ml de álcool. Ele dizia: “hoje sou um homem rico, porque não há riqueza maior do que ver os filhos, cada um, cuidando de sua família, encaminhados na vida, mas unidos...”

Pensei em iniciar minha resposta ao comentário daquela senhora, plagiando o papai. Ensaiei, rapidamente, na cabeça o seguinte discurso: Bom, caro o exame é sim, mas “hoje sou um homem rico”, com o encaminhamento dos filhos a gente se sente assim, tanto por isso ser um feito de valor extraordinário, como por nossas finanças domésticas se destinarem, agora, apenas ao casal e blá blá...

E comecei:

- Bom, caro o exame é, sim, mas hoje sou um homem rico...

Momento em que fui interrompido pela técnica de laboratório, toda apressadinha, chamando: “Sr. Renê Garcez Moreira!” Levantei-me, quase que automaticamente, num impulso só, por ter chegado o fim da espera e a acompanhei, sem titubear.

A moça me encaminhou para outra sala de espera, lá por dentro, onde eu aguardaria a minha vez. Eu estava só, nessa sala. Deixei meu celular com Emília, na sala anterior. De maneira que, como raras vezes, fiquei apenas com minha própria companhia. Tive tempo para pensar e a primeira coisa que me veio à cabeça, foi o ponto em que minha última fala foi interrompida. Que horror, que última impressão devo ter deixado, de sujeito pretencioso! Não tive tempo para complementar meu discurso. Quem manda ser prolixo!

Lembrei de tantas vezes que, em momentos de descontração, regados à eloquência etílica, emendei um assunto no outro (típico “e por falar nisso...”), sem concluir o pensamento anterior, dando margem a interpretações caolhas. Mas nessas ocasiões, quase sempre, todos os interlocutores estavam ébrios, e sentido ou completude de raciocínio era o que menos interessava. Mas sóbrio... Prometi a mim NUNCA MAIS repetir o embrolho!

Nesse instante, adentra à sala mais uma paciente. Também sem celular. Inevitavelmente, começa um diálogo, meio inibido e seguido de pequenas pausas no início:

- Bem-vinda a mais um cantinho do castigo!

- Ah, valeu (rs).

– Outra sala, heim?

– Num é, chato isso!

- Frio aqui, né?

- Pois é...

- A senhora também deixou o celular na outra sala?

– Sim, com minha irmã. Prefiro rezar, sou católica do tipo conservadora, eu rezo muito, sabe?

- Mas a senhora sabia que tem um guarda-volume nesta sala?

- Sei, mas não confio, não confio em ninguém!

- Ah, tá...

Até que a natureza dos exames entra em pauta. A mulher fala que o exame dela é feito com a utilização de uma agulha grossa, mas que não via problema, porque já se tratou de dois cânceres e fez muitas sessões de quimioterapia. Fiz o contraponto, dizendo que não sou muito amigo das agulhas, nem as de seringa de anestesia de dentista.

Mas, para não deixar uma imagem de frouxo, disse que já doei sangue muitas vezes, sem sentir qualquer desconforto, durante a indispensável punção. Foi quando, por um lampejo de desnecessária honestidade, para a ocasião, resolvi ressalvar minha última doação. Doeu. E não foi apenas no ato da picada, mas durante os primeiros minutos do processo. Entretanto, resolvi esclarecer minhas suspeitas pela exceção.

Sou absolutamente contra toda forma de discriminação, seja em razão de cor, religião, orientação sexual, ou qualquer outra. Na ocasião em referência, estava passando na televisão uma matéria, sobre a aprovação da lei, que criminaliza a prática de homofobia. O técnico (ou auxiliar, sei lá), um sujeito nada educado e meio grosseirão, fez um comentário ao nível do que ele aparentava ser. Impulsivamente eu rebati. O cara nem disfarçou a ira contida, descontou na minha veia, com toda certeza!

E assim, fui relatando minha suspeita à minha interlocutora:

- Acho que a agulhada doeu, não por acaso, o técnico que puncionou minha veia não foi com a minha cara. Após assistir a uma reportagem na tv, revelou-se ser um sujeito homofóbico...

Foi aí que uma técnica de laboratório apareceu na porta e anunciou a vez da mulher, para o exame dela. Com ar de alívio, rapidamente, ela se levantou e acompanhou a moça...

Renê Garcez
Enviado por Renê Garcez em 22/04/2024
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