O beija-flor

Lúcio Alves de Barros (08 de janeiro de 2008)

Em homenagem ao poeta maranhense Ferreira Gullar (José Ribamar Ferreira)

Um beija-flor me contou que no Estado de Minas Gerais “bandido bom é bandido morto”. Ele disse que no Estado do Rio de Janeiro, principalmente na capital, essa frase é norma e tornou-se banal ver corpos e mais corpos pelo chão. Ele foi mais longe e disse que em Minas Gerais a cultura é diferente. Os cariocas falam de mais e pensam que podem ser o centro do Brasil. Os paulistas falam de menos e juram ser os melhores. Os capixabas possuem o nariz empinado, mas são gente muito boa. Os que moram no Piauí são engraçados, mas ficam enfurecidos quando se fala que eles não estão no mapa e os baianos continuam na vida de carnaval que levam. Daí que o passarinho afirmou algo assustador: em Minas Gerais nada se fala e nada se jura. Os mineiros fazem as coisas na “calada da noite”. Voando e meio atordoado citou o poeta mineiro, Otto Lara Resende (1922-1992): “o mineiro só é solidário no câncer”. Pensei com os meus botões: “o mineiro não é solidário nem no câncer”. Não queria concordar com o pássaro, mas logo ele posou e cansado disse que não faz muito tempo morreram queimados 25 meliantes no interior de Minas. Ele não sabia o nome da cidade, pois só ouvia as coisas e voava. E foi mais longe, escutou em certas cadeias e prisões torturas, tal como se lá fossem os morros do Rio de Janeiro. O beija-flor sempre vai ao Rio, diz gostar do mar e da praia, mas não se interessava em ficar em Copacabana. Disse não suportar a empáfia dos gringos, então ficava na favela mais próxima, local onde se vê o mar até acabar.

Eu sorri para o passarinho e ele afirmou que não tinha acabado a história. Estava voando do Rio para cá e ouviu muitos gritos. Voou até lá e presenciou a morte de 08 meliantes que estavam sendo queimados pelo fogo. Assustado voou até a casa mais próxima e pensou como era a humanidade. Os gritos eram terríveis e o cheiro de carne humana queimada estava ficando em suas penas. Ele escutou na TV que o problema foi em um curto circuito e os policiais e as autoridades presentes no momento tentaram salvar os coitados que estavam sendo lambidos pelas chamas. O passarinho, agora triste, salientou que a cadeia parecia um inferno. Na verdade ela já era, só faltava o fogo. Disse que não estava contente com as explicações oferecidas pela TV, tampouco com as autoridades que gostavam de aparecer nos jornais. Em Minas, ele garantiu, a culpa nunca é de ninguém. A “mineiridade” parece ter dessas coisas, o mineiro faz e fica calado, é enigmático, nunca se sabe com quem se está lidando. Com contundência afirmou que, é um povo desconfiado e metido a conservador, sendo que está tudo de pernas para ao ar, mas que sabemos muito bem esconder.

O beija-flor disse que não precisa voar muito longe para perceber os problemas na saúde pública, nas estradas, na justiça, na segurança, na educação e nos mensalões da vida política. Disse que no norte de Minas é ostensiva a prostituição infantil e no sul já foram encontradas toneladas de maconha e cocaína. Contudo, como os mineiros são espertos muito pouco foi divulgado em nível nacional. Ele não sabe o porque. Eu também não. Mas quando lhe disse isso me chamou de idiota e apontou que, tal como meus conterrâneos, também não quero é ver as coisas. Desculpou-me e não me julgou porque tem certeza que está tudo muito bem escondido e quem vem aqui em Minas ou vive por aqui durante muitos anos também não consegue ver. Fiquei bravo e muito magoado, mas ele sorriu e disse que “mineiro além de não ser solidário, é bravo e não aceitam críticas”. Abaixei a face e dei de ombros diante de minha pequenez. O beija-flor estava certo e perguntei o que achava dos mortos da pequena cidade mineira.

Assustado e com um leve olhar de ironia sobre a minha alma asseverou que não acreditava na minha ignorância. Em sua altivez, disse que a culpa obviamente é das autoridades, do Estado e da justiça. Há muito ele via delegacias destruídas pelo tempo, abertas e jogadas no interior como verdadeiros depósitos de gente. Além disso, apontou que muitas sequer tinham água e as que ainda não queimaram gente são até piores do que aquelas que queimou. Lembrou, novamente dos 25 mortos na outra cadeia e chamou os mineiros de burros, ou muito espertos, porque colocaram duas “gangues” rivais no mesmo lugar. Mas por lá ele passou rápido, estava com dores na asa. Contudo, em ambos os casos, era mais do que perceptível o abandono das políticas públicas carcerárias. Ele sabe que o governo anda construindo penitenciárias e teme que os mineiros sejam todos presos. Olhei bravo para ele, mas o passarinho sorriu e de soslaio observou os meus movimentos como se culpa no cartório eu também tivesse. Mas não convencido com nossa conversa, disse que tudo isso poderia ter sido evitado, desde que as autoridades tivessem realmente um pouco de juízo e responsabilidade polícia e social. Nada justificava mortes daquele jeito, os berros e o cheiro de carne humana. Ele disse que se sentia bem em ser um passarinho e morria de medo de humanos. Agradecia e orava a Deus todos os dias por ter nascido um passarinho. Indignado, provocou-me: “mineiros e humanos são todos iguais”, mentirosos, teimosos, invejosos, sádicos, covardes, irresponsáveis e, dependendo o lugar que ocupam no poder, se sentem verdadeiros deuses com poderes de vôo e modificação de outros seres humanos.

Fiquei enfurecido e quase não fiz valer a verdade do passarinho. Algo abateu o meu espírito, sossegou o meu impulso de morte e pensei melhor. O beija-flor estava correto. Nada fizemos e ainda é pouco o que se está por fazer. Tive vergonha de ser humano. Pensei em Otto Lara Resende, nem sei o porque, mas também lembrei de minha mãe, do meu franzino pai e dos meus irmãos e amigos. Todos os mineiros são assim? Claro que não. Mas os fatos que nos acontecem, até mesmo no dia-a-dia, muitos às escondidas e vários deles somem logo dos jornais são preocupantes. Se nem todos são assim pelas bandas de Minas Gerais creio que a maioria é. Quando disse ao beija-flor o que se passava em minha mente, desaforadamente o danado gritou: “espero que a carapuça não lhe sirva". Olhei rápido para a árvore na qual ele se encontrava e ele saiu voando sem desejar ao menos um Feliz Ano Novo. Talvez, pelos acontecimentos, ele tenha razão, o ano não começou muito bem por aqui. Provavelmente eu o veja semana que vem, mas confesso que estou morrendo de remorso e vergonha.