A VIZINHA E O "SICÓLOGO".

"Ultimamente ando de saco cheio de umas coisas e de outras pessoas. Meu telefone, por exemplo, mas parece um serviço do tipo telecobrança, no meu caso, o teledesgraça. Uma vez por semana, altero minha voz. Por vezes transformo-me num sujeito irritado, impaciente, breve e monossilábico. Noutras vezes num sujeito carente, afável, dócil, e deixo um longo recado. Geralmente as pessoas não agüentam esperar o fim da gravação e desligam. Mas 'eles', não. São como gafanhotos, devoram tudo, suportam tudo e qualquer fingimento. Qualquer gravação, qualquer farsa. São esquisitos. Já repararam como as vozes das gravações de cobranças têm um tom mórbido? É apavorante. Parece que vão invadir a qualquer momento a sua casa armados até os dentes. Fico sitiado, preso e paranóico. Eu sei que devo! Devo e deverei pagar assim que possível. Mas ‘eles’ continuam e continuam e tem o corte da linha e tem o SPC e tem sei lá mais o quê. Ainda por cima contam com o aval da Anatel que garante que as companhias telefônicas nos cobrem contas retroativas. Podem nos cobrar contas de até três meses atrás. O que devemos fazer? Talvez substituir os quadros da sala por enormes painéis de cortiça e neles afixar todas as contas telefônicas do ano? Ou talvez comprar um caderno de quinhentas páginas e anotar a hora da ligação, com quem falou e a duração. E aquela voz macabra perseguindo-nos como se fosse a morte carregando sua foice próximo ao pé dos nossos ouvidos. Se não for a gravação são as cartas de cobrança que têm sempre aquela simpática frase no rodapé 'Caso tenha pago, favor desconsiderar este comunicado'. É algo assim. Francamente, uma situação agradabilíssima. ‘Você deve tanto a tal banco, os juros são..., corrigidos pelo índice...’. Insano. E se estou com dor de barriga, febre, fome, sede, sujo, com remela, com pus, com catarro? É inútil. Danem-se.

Peguei um cigarro, uma xícara de café, e fui para o banheiro. Sentei na privada, imaginei meu mundo ali, naquele lugar seguro, silencioso, sereno, reservado. Sensacional, a impressão é impar. Dei a descarga enquanto cantava o hino Russo. Sei somente algumas palavras, o que vem em seguida é pura imaginação, preguiça ou falta do que fazer. Sou assim, um observador, um farsante. Acho que teria sido um bom Advogado. Quando criança imaginava com reagiria a visão de uma mulher obesa, feito uma suína alva, suja de lama, menstruando. Aquela visão com o passar dos anos deformou-se. Talvez ela nunca tenha existido, talvez esteja numa situação financeira melhor do que a minha e não se esconda e se assuste com gravações e cobranças. Talvez seja a Advogada da empresa que colocará meu nome no SPC.

Sai do banheiro, fui direto pegar outra xícara de café quando o telefone tocou - não sei por que não me livro desse aparelho de uma vez por todas? Atendi, mais uma chateação, a consulta com o tal psicólogo. Tudo porque andei me queixando de que estava meio triste, ficando meio louco. Imaginem, coisa pouca. Uma pessoa muito querida insistiu que eu fosse a uma consulta com o doutor tal, da clínica etc. Tomei um banho, em seguida me vesti tentando combinar as cores, tentando me camuflar. Adoro fingir que estou a caminho de um grande evento, mesmo que seja, às vezes, para atender o carteiro na porta de casa. 'Desapegue-se da pobreza', um pastor disse isso certa vez num desses programas religiosos que passam na TV; comecei a pensar naquele pastor quase como um xamã, um ídolo. Dependendo da circunstância me deixo influenciar por comentários sem qualquer profundidade. Chega.

Tranquei a porta de casa e caminhei em direção ao portão que dá acesso à rua. Estava fechando o portão quando minha vizinha, a rainha da digressão, me interpelou com uma conversa se pé nem cabeça. 'Bom dia', ela disse já com um dos braços envolvendo o portão. 'Bom dia', respondi tentando transparecer minha pressa. ‘Você está de saída?’, com olhar de soslaio. Não sabia como responder: ‘Não, estou fugindo de casa porque me telefone me persegue’. 'É, tenho um compromisso', soletrei a frase na esperança de que ela se tocasse. Nada disso. E ela então começou o 'aluguel'. ‘Como está quente hoje. Você sabe que eu tenho um prima que uma vez fez uma viagem para Brasília e ela me disse que lá faz um calor sufocante? Um dia desses eu fiquei pensando nessas pessoas que morrem sufocadas, afogadas, deve ser terrível. Eu quase me afoguei num lago do sitio do meu tio que era cheio de patos. Ele criava os patos e todos os finais de ano ele os matava para a ceia de Natal. Eu não comia, tinha pena deles. Minha mãe dizia que era pecado matar o que se cria. Que os patos se apegavam as pessoas. Minha mãe morava aqui perto, na rua de trás. Agora vão derrubar aquelas casas para construírem prédios. É um absurdo. Quando eu era criança, o bairro era todo de casas...’, e ela poderia continuar e continuar para sempre, eternamente. Queria ter naquele instante um espelho para ver meu rosto. Eu só respondia ‘é, é’, o que mais poderia dizer? Escutei o telefone tocar, foi a brecha que encontrei para interromper aquela tortura. ‘A senhora me dá licença que o telefone está tocando?’. Ela parecia estar num estado de transe hipnótico, porque eu entrei em casa e ela permaneceu no mesmo lugar, imóvel, inabalável. Entrei em casa. O telefone parou de tocar justo quando peguei o gancho. Irritante! Liguei a secretária eletrônica e escutei a mensagem da minha amiga que já estava no consultório perguntar se eu iria me atrasar. Fui até a janela, espiei através da cortina e a vizinha ainda estava apoiada no portão. Tive vontade de tacar um coquetel Molotov nela. Esperei uns vinte minutos ou mais na esperança que ela se fosse embora, que desistisse daquilo de uma vez por todas e nunca mais dirigisse a palavra a minha persona. Cheguei a pensar se ela não estaria tendo derrame, um infarto, um orgasmo, ou se era sádica, e mereceria, para o bem da humanidade, ser queimada viva na frente da minha casa. Joana D’Arc!, talvez estivesse ouvindo vozes dizendo: ‘Permaneça aí, não se abale, em algum momento ele vai ter que sair e escutar todas as suas maravilhosas experiências’. Para meu alivio ela partiu. Como se tivesse recarregado suas baterias, sacudiu a cabeça sem lembranças anteriores e partiu. Eu é que comecei a ouvir uma voz rouca dizer: ‘Vai, vai até a casa dela e põe fogo em tudo que você enxergar pela frente. Não deixe que ninguém escape. Vai, vai de uma vez!’, aquilo foi realmente assustador. Quando dei por mim estava na cozinha procurando alguma coisa. Nada fiz. A voz deu um tempo, calou-se. Sentei no sofá, abri um livro de David Hockney. O desenho ‘Man Ray’ de 1973 é a cara da minha vizinha, pensei, e eu estava com cara de Manuela Rosenthal enquanto esperava. Lembro-me que Sir. Francis Bacon dizia que ‘se deve desconfiar de tudo que a mente aceita sem hesitação’. Que voz era aquela, cacete? Esperei. Esperei um pouco e sai de casa, me senti o tarado da capa preta. Tranquei a porta...

Peguei um ônibus debaixo de um calor perturbador. Cheguei no consultório uma hora atrasado. Minha amiga estava, digamos, impaciente. E aí?, perguntei na maior cara-de-pau. Ela se levantou, pediu que eu abrisse a mão, pousou um bilhete nela e partiu em silêncio. Prefiro não mencionar o que estava escrito no bilhete. Só sei que ela ficou algumas semanas sem atender meus telefonemas. Não pude impedi-la. Observei seus lindos sapatos vermelhos de salto alto conduzirem-na através da porta de entrada, tal qual uma noiva arrependida. Sentei na cadeira da sala de espera e esperei. Esperei uns quarenta minutos para ser atendido. Finalmente chamaram meu nome. Já não me lembrava do meu nome e tão pouco o que estava fazendo naquele lugar e que lugar era aquele. Uma mulher uniformizada, parecia uma enfermeira, de pele morena e cabelos castanhos se aproximou e perguntou se eu era o fulano de tal, respondi que sim, aliviado. Aliviado talvez feito minha vizinha, após recobrar a consciência e perceber que aquelas estórias, provavelmente, jamais tenham acontecido. Levantei e acompanhei aquele traseiro fabuloso. Não tenho taras com mulheres uniformizadas, mas queria ser o melhor amigo dela, ao menos ao longo da próxima hora. Ela abriu a porta do consultório e lá estava o psicólogo sentado à mesa. Entre e sinta-se à vontade, disse sem olhar para minha cara, ocupado lendo um jornal estrangeiro – pude notar. Sentei e permaneci em silêncio. Numa mesinha que ficava ao lado da poltrona, uma escultura de uma cabra sem a cabeça chamou minha atenção. Comei a olhar para aquela porcaria barata e me dei conta da fome que sentia. ‘Usted que es o fulano de tal?’. Pronunciou meu nome com certa dificuldade, percebi que era de fato estrangeiro; talvez paraguaio, boliviano, venezuelano, ou talvez um chinês criado em Bogotá. Sim, eu mesmo, respondi temeroso. Ele se levantou e se sentou próximo à poltrona que eu estava sentado. Cruzou as pernas e me perguntou: ‘Diga mi hijo, qual es su problema?’. Uma pausa. Olhei fundo nos olhos dele e contei minhas preocupações recentes. Ele escutou sem pestanejar. Quase me senti seguro com sua postura profissional, até que antes de eu terminar minhas revelações ele se levantou, caminhou até a sua mesa, abriu uma gaveta e tirou dela um bloco de notas. Começou a escrever algo, a prescrever algo, e me chamou. Levantei achando aquilo meio precipitado, mas... ‘Mira, yo tengo acá uns remedinhos que pueden...'. 'Pombas!, um psiquiatra. Minha amiga é uma amiga da onça, não estou tão ruim assim', pensei e ele continuou 'E se quieres puedes comprar en la clínica'. O sangue subiu à cabeça, ferveu. Aquele sotaque espano fortíssimo me fez lembrar do Walter Mercado, não me contive, interrompi-o: ‘Doutor, não me leve a mal, mas eu não vou ingerir remédios coisa alguma’, respondi demasiadamente irritado. ‘Pero estos remedios son muy útiles y confiables, estos son la solución para tus problemas’, insistiu. (OBS: Perdoem o meu espanhol) Quase disse: ‘Olha aqui primo do Walter Mercado, o seu lugar é num show bizarro de TV e não numa clínica, e se numa clínica como paciente, e eu já estou com muitas despesas e problemas para me deixar viciar por uma porcaria preparada por um contrabandista paraguaio ou boliviano ou venezuelano, e depois me ver rastejando aos seus pés por causa disso aí, e você dirá que remédios só mediante a troca de favores sexuais, ou se eu levar alguma encomenda suspeita para algum parente seu em Bogotá’. Somente disse que não estava disposto a tomar qualquer medicamento. Ele insistiu, insistiu e insistiu. Naquele momento a tal voz ‘baixou’ novamente, ‘Mata esse impostor, acaba com a raça dele!’, furiosa, agressiva ela ordenava que eu fizesse exatamente o que alguém deve ter tentando fazer no país de origem do primo Walter; talvez por isso tenha vindo se esconder no Brasil. ‘Doutor, tenho que ir, tenho um compromisso’, me despedi e fechei a porta do consultório sem deixar que ele pronunciasse outra palavra. Sandice. Quem é que se deixa levar pela conversa dum camarada desses?, pensei ao fitar com os olhos a boasuda da enfermeira. Fui embora daquela 'gaiola das loucas'. Fui embora para nunca mais.

Atravessei a rua e entrei numa farmácia. Comprei um inofensivo doril e fui para casa. Chegando na rua de casa vi minha vizinha 'alugando' um amigo. Fiquei com vontade de salvá-lo, mas não, abandonei os dois a própria sorte. Pensando melhor a pobre da vizinha mas parece com a pintura de Jean-Louis-André-Théodore Géricault, a ‘Alienada Monomaníaca pela Inveja’. Inveja da vida dos outros e da vida que ela acredita ter vivido. Entrei em casa e reguei minhas plantas, em silêncio absoluto elas `sorriram´ para mim. Tudo mais deixou de ter importância. Esse é o meu melhor ‘remédio’".