Desventuras de Lhy A. - Parte I : O Atraso

05h00 - O celular desperta pela primeira vez.

05h15 – O celular desperta pela segunda vez.

05h25 – O celular desperta pela terceira e última vez.

Ela não acorda

No dia anterior, havia ficado até meia-noite na Internet pesquisando imagens de pessoas desconhecidas; de momentos inesquecíveis, de flores, de poesia, de música.

Gostava de sentir-se viva, dos movimentos; pés, braços, cabelos; do ranger dos móveis, do barulho da chuva, da água fervendo no bule, da pipoca estourando na panela.

Voz rouca.

Ser louca.

5h50 – Atrasada.

Dez minutos para se arrumar.

Dez minutos, para sair de casa correndo até a rua de baixo e pegar o fretado.

Dez minutos....e agora?

Destino: escola.

As mãos agiam por si só, como se não fosse necessário o cérebro processar e ordenar o que haveria de se feito primeiro.

Lá fora estava frio.

Lá fora estava chuviscando.

Foi colocando um moletom por cima do pijama amarrotado, uma calça xadrez desbotada e seu velho par de all star gasto.

Pegou o celular-despertador e as chaves de casa e socou no bolso.

Pegou a mochila pesada e cheia de livros e jogou nas costas.

No quintal, como sempre, tropeçou nos cachorros que aos primeiros raios da manhã, já estavam correndo e brincando para lá e para cá.

Ia escovar os dentes, pentear o cabelo, pegar dinheiro para o almoço...

...Ia.

6h00 – Tenho que ir!

Saiu correndo; atropelando cachorros, escorregando no piso frio e úmido; tropeçando em pedras na calçada.

Pessoas começavam a acordar e a ascender as luzes da casa, o sol ia nascendo, e com ele surgiam as primeiras movimentações do dia.

Na avenida, os carros passavam velozes e inconseqüentes desrespeitando o semáforo.

O chuvisco estava tornando-se uma chuvarada.

Do outro lado da avenida, o tempo corria.

Tempo, algo que ela não tinha.

Do outro lado da avenida, ela avistou o ônibus deslizando sobre chão pavimentado.

Droga, não devia ter se atrasado!

Do outro lado da avenida, ela esperava a boa vontade dos motoristas para atravessar.

E viva, de preferência.

Enfim, o fluxo de carros diminuiu.

Enfim!

Foi preciso um bom par de pernas rápidas e aderentes, e uma sorte inexplicável para alcançar o ônibus.

Ela conseguiu.

Encharcada, mas conseguiu.

Ao entrar, agradeceu ao motorista por tê-la esperado e desejou-lhe um bom dia.

Seguiu pelo corredor até chegar no quarto banco da esquerda.

Murmurou “bom dia” para mais duas pessoas, que jaziam nas poltronas ao lado.

Colocou sua mochila num canto da poltrona direita e descansou sua cabeça em cima dela.

Colocou os pés próximos à janela e encolheu-se nas poltronas.

Seriam longos 90 minutos de viajem.

Às vezes mergulhava num sono profundo.

Às vezes sonhava acordada.

Raramente, observava pela janela as árvores que passavam apressadas como borrões em uma pintura guache; pessoas sonolentas nos pontos de ônibus, lojas sendo abertas, donas-de-casa varrendo o quintal, velhinhos e velhinhas fazendo caminhada, pais levando seus filhos para a escola, trabalhadores indo trabalhar, donos levando seus cães para passear, consumidores indo à padaria...

...e o trânsito contínuo.

Carros e mais carros.

Poluição e mais poluição.

Barulhos e mais barulhos.

Em outros momentos, quando seu rosto pendia para o outro lado, podia observar pessoas dormindo em suas respectivas poltronas, outras ouvindo seus mp3’s quase em transe, e até algumas estudando. Enquanto isso, o resto do ônibus zunia com as conversas altas dos garotos e garotas, que passavam o percurso longínquo falando quase ininterruptamente.

E ela nem sabia de onde tiravam tanto assunto.

Talvez porque ela nem seria capaz de tanto.

Ficava a viagem toda absorta em pensamentos, que muitas vezes se tornavam devaneios, sonhos...Enquanto ela caía de tempos em tempos na tentação de dormir.

E quase sempre, dormia.

Dormia...Sonhava...