Um chope no tempo

UM CHOPE NO TEMPO

Flávio M Pinto

Semana passada tive a sensação de haver voltado no tempo.

Sorvia o primeiro gole de uma caneca de chope num fast food de um Shopping de Porto Alegre.

A temperatura e o gosto da bebida me levaram longe, a pouco mais de 30anos atrás. A mais de trinta anos.... Sim, sem dúvida, era o mais legítimo chope Gazapina que estava tomando. Sim, aquele extraído daquela barriquinha de madeira, um barrilzinho de 25 litros, pequeno, gorduchinho, generoso em nos oferecer um belo chope após ação da gurizada na bomba de pressão. A gurizada ficava em torno do barril, aguardando a sobra da espuma e fazendo força na bomba.

É, estava tomando um chope Gazapina em 2003 e não acreditava. Não preciso dizer que quase fui ás lágrimas, mas como libriano finge muito( assim me disseram uma vez no ICQ), me contive, mas voei muito e longe.

Aterrisei num casamento numa casa vizinha a de um tio meu já falecido.

Estava de férias e o calor naquele dia pedia bebidas geladas, afinal era final de ano em Sant’Ana. E era um chope que estava bebendo, Gazapina, sim, mas num recipiente sui generis: um piniquinho de criança, branquinho, alouçado e SEM USO. Claro que o pinico era sem uso. Isso eu sabia, pois o havia comprado.

E era um sábado convidativo para esticar a noite aos locais de costume da minha turma( Renato, Tatu, Cadico-meu irmão, Danúbio,... ), que eram os Clube Cruzeiro e da Brigada.

Na festa rolava o básico , pois o casamento não era de luxo: como aperitivo - pastéizinhos assados, pequenos, de carne com temperos, disputadíssimos; pedaços de torta napolitana, típica da fronteira, sucesso garantido bem antes das pizzas; salada de maionese que poderia vir de duas formas: em recheio de uma torta ou com batatas; os canapés-barquinhos ou canudinhos, com recheio de patê ou maionese; empadas de palmito deliciosas. Tinha também, até onde não sei a exclusividade, da carne de porco assada e temperada, servida fria e em pequenas porções. E era a amiga dos engarrafamentos nos hospitais da cidade nos casamentos de fim de ano. Fazia boa dupla com a maionese naquele calor infernal. Os sanduíches, guardados enrolados em panos úmidos eram outra atração: ainda podemos encontrá-los , tal como naquele tempo, em algumas lanchonetes na cidade. Aquele pão macio recheado com uma mantequilla uruguaya ou patê.

Nos aniversários na minha casa, era tradição da turma que ia para os fundos, servir um sanduíche diferente: havia no comércio uma esponja que tinha a mesma utilidade que hoje tem o Perfex. Mas sua textura parecia a de pão de sanduíche do Aragonez, o melhor da cidade. Era tiro e queda: o último sempre recebia a bandeja com sanduíche para se servir e nele estava o falso. Aliás, o meu pai, sempre colocava todos falsos na bandeja. E aí era uma festa. Sempre o sanduíche de borracha era mordido pelo que chegava por último.

Não preciso dizer que todos os quitutes eram confeccionado em casa com a parentada, vizinhos e amigos próximos, todos participando antecipadamente da festa.

Mas voltemos ao casamento. O prato principal não lembro, mas dos doces sim. Mil Hojas, Bem casados, Quindins, Negrinhos, um outro que era um negrinho, mas invés de chocolate tinha goiabada e côco, e outros tantos.

As bebidas eram Gazapina, claro. Guaraná Frizante, Soda Limonada, Malta , e o chope.

E aquele sábado no Shopping me trouxe a realidade . Não queria que a caneca esvaziasse, e tive, bem dito, medo de não poder tomar mais um chope Gazapina. Como foi duro terminar aquele copo de chope. Via a gurizada na bomba de pressão bombeando e o barrilzinho começando a roncar. Era só espuma.

E eu via num relance a explosão das caldeiras e o Gazapina indo pelos ares naquela fatídica noite.

Não iria tomar mais um chope Gazapina. Nunca mais. Não iria buscar mais uma barra de gelo nem a serragem. Puxa vida, era isso.

A caneca continuava ali me olhando e sem o chope, que na minha sede, esquecera de sua origem e o bebera.

Mas que coisa, porque as coisas boas se vão? É a vida, tudo segue seu rumo, é inevitável, inexorável , mas impossível fugir do tempo.

Mas ainda retornarei lá para beber e matar a saudade.

( fato real acontecido em Sant’Ana do Livramento-RS)