Valquíria e Otávio

O Natal tem o poder de aproximar as pessoas. Para mim, os dias que antecedem o Natal são carregados de uma fraternidade tão palpável, que ao longo dos anos tem ocorrido tantas coisas ao meu redor, para as quais parece que sou atraído para participar positivamente.

Era véspera de Natal de 1947. Trabalhava eu, nesta época, no bar do Sr. José Augusto Coelho, rua 13 de maio esquina de Saldanha Marinho. Bar muito bem freqüentado, na véspera de Natal ele se transformava numa casa acolhedora e aberta a todos os gostos e condições financeiras, pois o Sr. Coelho não visava a lucros nesse dia. Portugueses, italianos, espanhóis, russos e judeus, além dos brasileiros, é claro, formavam uma só família e com grande alegria festejavam a grande data.

Bandolins, violões, flauta e acordeom executavam belas valsas, fados, cançonetas napolitanas, e todos ouviam com o maior carinho, e através da música não faltavam as lágrimas daqueles que um dia deixaram seus países de origem, e nunca mais puderam revê-lo.

A festa estava muito animada, todos comiam e bebiam muito contentes. Foi ai que eu, que ajudava a servir as mesas, notei um casal que parecia não pertencer aquele clima de festa. Vi que a mulher devia ter uns 25 anos, no máximo, muito bonita, me lembrava um pouco de Ingrid Bergmann, em Joana D’arc. Trajava um vestido verde-escuro de veludo, que já mostrava uma falta de brilho devido a muito uso. O homem, de uns trinta anos, parecia muito mais velho. Vestia um terno preto que já tinha visto dias melhores. Parecia muito abatido, julguei que deveria ser insucesso no trabalho ou a sua saúde não era, no momento, das melhores. Notei que não havia brilho nos olhos dos dois.

Levado por um impulso, alguns momentos depois voltei à mesa e lá estava Valquíria sozinha. Vim a saber por ela o seu nome. Vi que ela não conseguia conter as lágrimas e então, convidei-a a vir para um reservado, que ela aceitou e me disse: ” eu te agradeço por me tirar de lá”. Depois de chorar muito, ainda muito emocionada, contou: “ a minha família é muito rica e tradicional em São Paulo. Em uma das festas que eram dadas em casa, Otávio foi com uma orquestra, ele era o cantor de músicas portenhas. Nós começamos a namorar e alguns meses depois nos casamos, contra a vontade da minha família. Vi que não tinha mais ambiente para continuar em casa e saímos. Eu só levei algumas roupas e poucas jóias de valor. Fomos para o Sul do Brasil onde Otávio tinha bons contatos mas, depois de alguns meses, ele foi acometido de uma doença nas cordas vocais e parou de cantar. Ai nós começamos a viver das jóias que eu tenho vendido, e do amor verdadeiro que nos une. Estamos em Campinas para que Otávio possa consultar um médico famoso daqui. Neste momento, ele saiu para ver se vende o meu relógio de ouro, presente dos meus pais nos meus 15 anos. Nada mais me resta de valor ”.

Do alto da minha experiência de vida, eu tinha 13 anos, lhe disse: “ Você já parou para pensar que os seus pais em São Paulo, também devem estar tristes com a sua ausência ? Porque você e Otávio não voltam para casa ainda hoje ? Até a meia noite tem trem para São Paulo. Eu acredito que vocês vão ser muito bem recebidos por todos. Vocês serão o presente de Natal que seus pais estão esperando”.

Ela então olhou para mim, era outra criatura. Os seus olhos já brilhavam e ela estava mais bonita ainda, e me disse: “Você foi o presente de Natal em resposta às minhas preces a Deus. As suas palavras tiveram o poder de me sensibilizar e de me fazer acreditar em poder ainda ser feliz”. Abraçou-me e beijou-me na face dizendo: “Vou seguir seus conselhos”.

Corria o mês de fevereiro de 1948. Num sábado à tarde parou um carro novo ao lado do bar, dele desceu um casal. Pareciam muito jovens e alegres, entraram no reservado e eu fui atendê-los. Ao entrar, fui abraçado pelos dois. Foi ai que eu notei que eram Valquíria e Otávio. Eles então, me contaram que naquela noite de Natal eles tinham ido para a casa dos pais dela, e a alegria e emoção foi enorme para todos. Ela me disse que hoje Otávio auxiliava o sogro na direção de uma indústria. Cantar era coisa do passado, e ela também colaborava com a família. Ai que eu notei como felicidade faz bem às pessoas. Então Valquíria me abraçou novamente, me deu um beijo na face e disse: “Um dia você vai saber quem colocou você no nosso caminho”. Já com lágrimas nos olhos, disse: “Deus lhe pague”.

Laércio
Enviado por Laércio em 18/01/2008
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