Balança mas não cai

Final dos anos 1960, cidade do interior, Porto Velho, capital do então Território Federal de Rondônia, bairro da Baixa da União, periferia da cidade. As diversões dos adolescentes daquela época consistiam em eventual pescaria no verão, esperar o domingo para assistir o “Canal 100” antes das sessões de cinema, os dribles (em “close”) do genial Garrincha jogando pelo Botafogo no Maracanã lotado, e o entrosamento divino de Pelé e Coutinho jogando pelo Santos no vibrante Morumbi (o diretor de imagem abria as jogadas em “close” mostrando a chuteira batendo e lançando a bola e grama em direção ao gol, em câmera lenta, e ir fechando as imagens em plano paisagem, primeiro o gramado, depois, todo o estádio. A molecada ia ao delírio), as paqueras invitáveis nas aulas de catecismo e as infalíveis “peladas” de final de tarde.

Num determinado dia de verão, como sempre, final de tarde, estava toda a turma sentada e um monturo de areia em frente a uma antiga ponte de madeira sobre um igarapé fronteiro ao campo de futebol discutindo quem começava contra quem. Na verdade, denominar as duas toras de madeira com distância aproximada de um metro e meio uma da outra assentadas sobre o igarapé, de ponte, era força de expressão. A antiga ponte havia sido desmanchada, restando somente os dois madeiros nos quais as pessoas para atravessá-los equilibravam-se precariamente. Pois bem excluindo-se os “pernas-de-pau” e incluindo-se os “craques-da-bola” ninguém chegava a um acordo. Toda vez era mesma novela. Já estávamos quase chegando as vias de fato, que fato nunca chegava, quando o “Zé Cutia”, um moleque franzino de pernas tortas iguais às do Garrincha e que por isso mesmo se julgava um gênio e como tal vivia imitando-lhes os dribles desconcertantes, cuspindo de lado por entre os dentes, e como a indiferença soberba dos Deuses da Bola, apontou com o queixo o “João Barril”, um bêbado do bairro que caminhava cambaleante em direção às toras de madeira que faziam a vez de ponte:

-Ispia! Olha ali, o “João Barril” mais bêbado que o meu pai em dia de pagamento. É hoje que ele se lasca de verde e amarelo. Toda vez ele enche os tubos de cachaça e quando vem atravessar a ponte ele balança de um lado para o outro, parece que vai para o fundo do igarapé e de alguma forma o desinfeliz consegue atravessar sem cair. Outro dia ele atravessou de quatro pés, e o pior, quando chegou do lado de cá tropeçou nas pernas e caiu de cara no chão. Dá só uma olhada na cara dele, está toda arranhada.

A discussão sobre a formação dos times ficou para segundo plano. Todas as atenções voltaram-se para o iminente tombo do bêbado do bairro, afinal ele vivia aos trancos e barrancos pelas ruas e becos dos redondezas, rara era a semana em que o “João Barril” não estava com a face lanhada ou o joelho esfolado. Todas as atenções voltaram-se para o pé-de-cana. Nada mais interessava ao grupo do que a mórbida expectativa do tombo do ébrio para o fundo do igarapé.

O bêbado aproximava-se do madeiro que estava a esquerda do grupo quando de repente num passo cambaio mudou de direção e apoiando-se com a mão no solo ficou momentaneamente com três pernas. Hesitante claudicou para o madeiro do lado direito. No grupo alguém iniciou as apostas: “Tou valendo um picolé de açaí como ele vai é passar no meio das toras e cair de vez”. “Que nada, aposto que ele vai dar nova vacilada e atravessa pelo lado canhoto”. “Só sendo... Do jeito que ele mostrou firmeza, dá só uma olhada no olhar determinado dele, ele vem mesmo é pelo lado das direitas. Tou valendo o teu picolé de açaí e mais um de tapioca. Tá fechado?”. “Acho que ele vai para o beleléu logo na entrada, no primeiro passo”. “Vai não... Tô vendo que ele ainda vai chegar até o meio da tora de pau depois ele dança, vai para o fundo. Duvida? Então aí vai.. Tô valendo os dois picolés, o de açaí e o de tapioca e mais um refresco de tamarindo. Quem for macho que tope a aposta”.

E assim o grupo estava, como sempre, divergindo em tudo, e enquanto as apostas corriam soltas, cada um mais certo do que o outro em suas opiniões. E o bêbado, vacilante, guiado pelo deus Baco, eterno companheiro, ora cambiava para o lado esquerdo, ora cambiava para o lado direito. De súbito, o “João Barril” olhou fixamente para o espaço entre os troncos de pau. “Eu não disse, ele vai é passar direto, entre os dois paus, vai mais é se lascar”. Alguém viu suas chances aumentarem. “Será? Sei não, olha lá, ele está com cara de quem vem pelo direito”. Um outro viu crescer a vitória. “Que nada, estão todos errados. Olhe ali, ele já colocou o pé no tronco esquerdo”. Acertou um terceiro.

Finalmente o discípulo de Baco iniciou a travessia tropeçando ora no pé esquerdo ora no pé direito, os braços abertos tal qual um equilibrista. Às vezes o bêbado praticamente encostava o nariz no joelho, outra vez vergava-se para trás parecendo um acrobata e quando tudo indicava que o tombo aconteceria o bêbado conseguia firmar-se ereto e assim dar mais passo em direção ao outro lado. “Dizem que bêbado e menino tem proteção dobrada do Anjo da Guarda, esse um aí, hoje, o anjo tirou plantão para fazer hora extra. Só pode”. Desesperançou-se um dos apostadores.

E a saga do “João Barril” continuava na difícil travessia. Subitamente, no meio do tronco faltou espaço para as duas pernas abertas e o João prostrou-se de borco, ficou deitado sobre o tronco, abraçado ao madeiro. A molecada exultou. “Agora ele se lasca, agora ele vai”. Vibrou o que tinha apostado que o bêbado chegaria somente até o meio da passarela.

Contrariando todas as expectativas “João Barril” conseguiu ficar de gatinhas sobre o madeiro. Olhou de esguelha para a torcida contrária. “Bando de fio da p...” Pensou. E olhando resolutamente para o final do passadiço engatinhou para o Sétimo Céu do outro lado, o paraíso da terra firme. A inebriante perspectiva da vitória de goleada contra a agourenta torcida de urubus que sinistramente o observavam esperando a sua derrocada final. Provavelmente um deles diria “tá lá, um corpo estendido no fundo do igarapé, passem para cá as apostas, ganhei” “Mas o meu santo é forte, hei de conseguir”. Pensava esperançoso o “João Barril”. Faltando menos de um metro para o final do martírio desabou o maior aguaceiro daquele verão. “João Barril” sentiu horrorizado o braço e a perna esquerda escorregarem para o vazio e olhando pra baixo ele viu as águas barrentas do riacho aproximarem-se perigosamente. E em meio ao desespero ele ouviu um alarido ensurdecedor como se as torcida do Corinthias e do Flamengo comemorassem, juntas, a conquista do campeonato mundial. Eram os urubus aumentando as apostas. “Esses moleques, no mínimo, não têm nem idéia de quem são os pais deles”. Pensou vingativo o heróico João.

Num esforço titânico, o valente João penosamente conseguiu arrastar-se meio de lado, meio de banda até o final da ponte. Beijou a terra molhada, ergueu-se altivamente, estufou o peito, levantou o queixo e marcialmente deu o primeiro passo na bendita terra firme, porém o excesso de adrenalina e a concentração etílica tinham sido demais e “João Barril” em semi-coma alcoólico entregou-se aos braços Morfeu sentindo a benfazeja e refrescante chuva na face adormecida. “Eu não disse que ele caía”. Consolou-se um dos apostadores. “É... Mais caiu na terra e aí não vale”