“Da temperatura de bondade"

Lúcio Alves de Barros

O amável garoto Bernardo convidou-me para a sua formatura e, na ocasião, desejou-me uma boa temperatura de bondade. Fiquei feliz ao mesmo tempo preocupado. O que seria uma “boa temperatura de bondade”? Seria possível a manutenção de 30 graus? Imaginem se uma pessoa amar em 100 graus? O sábio garoto não compreenderia o que estou argumentando. Após o acontecimento lembrei-me do filósofo grego Hipócrates (460 a.C -377 a.C). O famoso pai da medicina, apostava na existência de quatro temperamentos. Quatro tipos ideais de comportamentos que perpassavam a vida dos seres humanos: o colérico, o sanguíneo, o melancólico e o fleumático, os quais, respectivamente dependiam dos “humores” existentes no corpo: a bílis amarela, o sangue, a bílis negra e o fleuma. Grosso modo destaco cada um deles.

O temperamento colérico faz parte dos espíritos mais agressivos. Estaria em homens e mulheres enérgicas, otimistas, independentes, audaciosas, perspicazes e pragmáticas. O temperamento colérico estaria presente também em pessoas intolerantes, impacientes, astuciosas, ambiciosas, arrogantes e prepotentes. O segundo temperamento, o sanguíneo, é caracterizado por ações afáveis, compreensivas e simpáticas. Repousa sobre o sanguíneo, entretanto, ações histriônicas, egocêntricas, exageradas, dramáticas, medrosas, impulsivas e inseguras.

O temperamento melancólico é manifesto nas pessoas sensíveis, delicadas, idealistas, leais e perfeccionistas. Hodiernamente chamados de deprimidos, os melancólicos são entendidos como pessimistas, tristes, inteligentes, teóricos, anti-sociais e inflexíveis. Por último, e não menos importante, haja vista que inexiste uma hierarquização de temperamentos, destaca-se o humor oriundo do “fleuma”, o temperamento fleumático, caracterizado por pessoas tranqüilas, “políticas”, de olhares evasivos, idéias conservadoras e diplomáticas. Sobre elas sabemos do temor constante, da falta de iniciativa, do cálculo nas ações, da pretensão à onipotência e da desconfiança latente.

Como se vê, Hipócrates, bem antes do Cristo, já se esforçava na compreensão de nossos sentimentos e ações conscientes ou “inconscientes”. Obviamente, aqui e acolá, encontraremos pessoas que se encaixam perfeitamente nos tipos elencados pelo médico e filósofo grego. Mas diante da sabedoria da criança, pensei que Hipócrates desejava era justamente verificar a temperatura comportamental, medir os sentimentos mais sublimes e menos importantes. Pensei o que seria 100 graus de fleuma ou 40 graus de melancolia. Imaginei um artista 100 por cento fleumático. Este certamente seria um artista muito diplomata e de péssima reputação. Imaginei uma liderança de governo com temperatura acima dos 100 graus de coleridade. Provavelmente, seria um bom ditador. Compreendi a alta temperatura de São Francisco no “quesito” bondade e Lembrei-me dos 100 ou mais graus abaixo de zero de Hitler.

No saber inocente da criança e no conhecimento apurado e inovador de Hipócrates é possível tirar um tronco comum: a importância do equilíbrio, “nem mais, nem menos”. Minha mãe também dizia algo parecido: “tudo que é demais é problema, tudo que é de menos é problema”. Quanta sabedoria naquelas palavras e novamente as revejo nas singelas letras do garoto de apenas seis anos. Todavia, não deixei de pensar as conseqüências da temperatura dos sentimentos. O que seria amar 100graus? Odiar 45 graus? Amar zero 5 graus abaixo de zero? Ou odiar 20 ou 10 graus? Dificilmente vamos saber como tais métricas podem funcionar. Cheguei a pensar se amo 10 graus uma pessoa, 20 graus outra, ou mesmo que essa temperatura possa mudar conforme o andar da carruagem da vida.

Na verdade, estamos diante da complexidade do viver. Tenho afirmado que a vida não é para principiantes. O menino Bernardo aos poucos está deixando de ser principiante. Paulatinamente ele está vendo que a temperatura dos sentimentos deve ser medida. Amar pode ser o crime perfeito, mas odiar também. A temperatura ideal, provavelmente, (não) sabemos qual é. Acredito que é necessário amar o moribundo mais de 100 graus, o mesmo não penso dos políticos ou da vizinhança fofoqueira. Jesus ordenou que amássemos ao próximo como a nós mesmos. Isso é tão difícil quanto impossível e cheira à hipocrisia quem tenta tal empreendimento. O Bernardo ensinou-me que deve haver uma temperatura. Hipócrates mostrou que devo verificar o temperamento e minha mãe, na sua singela sapiência, disse que: “nem mais e nem menos”.