Sobre Macondo, eu e o mundo

Agora a pouco, enquanto minha imaginação divagava livre, inspirada pelas estórias de Gabriel Garcia Márquez em seu livro “Cem Anos de Solidão”, algo incomum me aconteceu.

Minha primeira reação foi um sonoro xingamento, que assustou um transeunte distraído que passava por onde eu estava assentado, descreverei a seguir este inusitado acidente.

Hoje é uma terça-feira úmida, e exatamente neste instante em que escrevo a chuva torrencial dos últimos dias deu uma trégua às lavadeiras desesperadas, que já se preocupavam com o musgo que lhes infestava o tanque e os varais.

Aproveitando esta pausa momentânea me assentei em um banco qualquer, entendam qualquer como escolhido sem nenhum critério, de uma daquelas praças que existem nas proximidades das igrejas, debaixo de uma frondosa árvore que apesar da dimensão admirável de sua copa, não fazia sombra alguma devido ao acinzentado céu que escondera o Sol desde o amanhecer.

O fiz sem maiores pretensões, sem um objetivo bem traçado, foi apenas uma necessidade inconsciente de me libertar da clausura me imposta pela chuva dos últimos dias, e exibir minha introspecção pelas ruas, enquanto me exilava no interior do livro que pretendia ler.

Antes de tudo, observei atento todo o meu arredor, e vi pessoas correndo, fingindo caminhar, uma pequenina criança loira dos olhos bem azuis, que certamente se tornará uma linda mulher quando chegar seu tempo, vi sua mãe desesperada, tentando conter o trote errante quase flutuante da filha desgarrada. Vi uma fonte de águas turvas que farfalhava incessante, tentando despertar um encantamento desgastado pelo muco que lhe subia a base, e pelas algas que lhe esverdeavam as águas, vi por fim um jovem desconcertado, com os olhos arregalados, tentando ver o mundo ao seu arredor como quem o olha com a alma, enquanto segurava um livro de capa azul, debaixo de uma árvore frondosa. Foi então que me peguei olhando a mim mesmo, me vendo de uma perspectiva externa, como um espírito desencarnado.

Foi debaixo desta que iniciei minha leitura, no exato momento em que Amaranta Úrsula voltava a Macondo com seu marido, depois da longínqua estada em Bruxelas.

Enquanto lia calmo e solitário, esquecido do mundo real e afundado naquela pitoresca descrição, tentava me tele-transportar para aquela cena, fazendo do canto dos pardais que comiam qualquer fruta acima de minha cabeça, o canto das aves enlouquecidas pelo calor das tardes de Macondo, que sempre lhes causa um disparate por frescor, e as fazem vazar as telas das janelas, para morrerem refrescadas pela sombra do interior das casas

Foi em algum momento quando minha mente mesclava o real, ou pelo menos o que a mim aparenta ser, a estória de solidão e minha imaginação esvoaçante, que um daqueles surreais pardais sobre a minha cabeça, fez a grande obra.

Carimbou a página trezentos e cinqüenta e sete do livro de Márquez, com seu excremento cloacal viscoso, e então involuntariamente soltei um sonoro substantivo, me referindo de forma não decorosa à grotesca substância.

Mas pouco durou a indignação momentânea, frente ao aplacador insight que me ocorreu. A caca ali depositada, não era, como interpretei inicialmente, uma degradação de tão precioso objeto, mas sim, um extrapolamento, um canal pelo qual a realidade de Macondo escoava para a minha realidade, e através do qual os frenéticos pássaros de Macondo, fugiam do calor arrasador das quatorze horas, para evacuar na minha realidade tão racional.