Solitude Stands by the River

Quando me pergunto se sou único em meio às andanças da vida, esbarro na questão primordial da solidão: nossa própria identidade.

Vou me descobrindo, vou-me – descobrindo; vou-me.

Ao encontrar pedaços de outros, por vezes já não identifico mais o que é meu.

Da infância trago uma tendência à fantasia, herdada talvez de pais sensíveis, de meu avô artista, de minha avó intelectual. Da idade escolar trago um gosto insano pela descoberta, pelo novo, por expandir meus limites – talvez inato a qualquer um. Da adolescência ficou apenas temporário temor às mulheres, fruto do isolamento de um colégio só para rapazes, paradigma da mudança inebriante dos costumes sociais que assisti em meus parcos trinta e seis anos de vida. Junto a tal temor, o amor aos livros, que sempre traz consigo certa tendência ao isolamento – mas isto ocorre também à maioria dos que não lêem, é próprio do adolescer. Da transição à idade adulta, isto é, daquele largo e indefinido período de tempo em que amadurecemos fisiológica, social, política e espiritualmente, carrego a decepção de descobrir inexistente a liberdade outrora sonhada e inevitáveis os cacos rascantes de relacionamentos que foram ao chão.

À crueza da solidão do imigrante que é começo e fim de tudo, origem dos questionamentos filosóficos primitivos (“Quem sou eu?”, “De onde vim?”, “Para onde vou”?) a idade adulta somou muito mais que um perfilar de respostas: uma longa coluna de novas perguntas.

Há um longo caminho que desemboca na solidão. Iniciamo-lo ao descobrir que somos parte de algo, que o que nos envolve enquanto bebês não é um prolongamento de nós mesmos, mas coisa a parte. Depois o queremos, todo, e sobre tudo perguntamos: “por quê, para quê?”, incapazes de obter respostas satisfatórias. Nossa curiosidade espreme os miolos dos adultos, desconserta pais e mestres, e em curto prazo nos rotula: pobres ou ricos, inteligentes ou burros, super-heróis ou desgraçados, quatro-olhos, cê-dê-éfes, vagabundos, bons de bola, bons de briga, pegadores, galinhas e tímidos. Um dia olhamos no espelho e é um desconhecido que está lá, imagem distorcida qual a do porteiro do prédio no olho mágico nos acordando de manhã com o jornal que parece dizer, como no poema de Cassiano Ricardo “menos um dia, menos um dia”... Desconhecemos o que fomos, olhamos as fotos do passado e nenhuma faz juz ao que éramos - 3x4 infames em documentos antigos, da época em que ainda nos faziam prender ou pentear os cabelos para trás ao tirá-las.

Quando a idade passou a ter uma pasta própria no meu desktop, de início um arquivo oculto, depois um atalho, hoje uma espécie de “u’ve got mail” do inferno, passei a me perguntar: será que TODOS percorremos este caminho? A imensa dificuldade de conhecer-se a si próprio, a velocidade dos afazeres diários a tornar-nos eremitas - encastelados virtuais – a rastrear interlocutores inteligentes (e a encontrá-los, por vezes, com mais facilidade na web que no convívio diário com o próximo), a solidão da página em branco agora emoldurada em azul XP, tudo isso me faz perguntar: seremos todos inatingíveis? Serei eu também assim aos olhos de meus companheiros de jornada, de planeta e de tempo? Estarei certo em meus questionamentos, será salutar sequer questionar alguma coisa, ainda, no mundo em que vivemos? Como julgar os outros (ainda que com o sadio objetivo de suceder o “juntar” ao julgar prévio), qualquer um, pelos vislumbres de personalidade que o cotidiano nos permite enxergar? Torno-me grande na inquietude que me impele e sustenta ou vil e mesquinho ao entregar-me ao que Lutero um dia chamou de “lamber as próprias feridas”? Numa sociedade hedonista e consumista, minha autocrítica impiedosa tornou-me cego às minhas virtudes, ou realmente pouco tenho a oferecer?

A julgar pelo que me pagam pelo trabalho estafante, pelo que imaginam (e falam!) de mim os colegas que na maioria das vezes nem me conhecem, pelos impostos que tiram a beleza inerente ao trabalho honesto e diário, pela superficialidade das relações de amizade nas grandes cidades, pela competitividade cega das repartições (sim, hoje quase todos nós trabalhamos em repartições, quer saibamos ou não), pelo insensato desembaraçar-se das relações familiares (experimente emigrar para ver como é), acho que não, não tenho nada a oferecer.

Aí me lembro do encontro, dos chamados da vida, e me descubro vivo de novo na timidez de um sorriso, no lento trabalho técnico de extrair este mesmo sorriso de uma criança desconhecida, de falar à alma ou ao pensamento de alguém que nem me conhece. Artes do encontro, negação da solidão ainda que dela não seja o remédio. E ao me benzer, benfazejo esta maravilha de mundo onde nenhum ser humano é igual ao outro, onde ninguém é inatingível (somos nós os maus engenheiros a não saber construir pontes), onde a inteligência é o dom e o fardo, sim, mas carregado em comunhão com tantas outras almas que pensam e sonham e lutam e se decepcionam, assim como eu ou de modo totalmente diverso; vendo nascer a cada novo par de olhos que conhecemos um oceano de possibilidades, a cada par de olhos um espelho a me refletir e uma porta para outras dimensões do conhecimento.

Continuo sem saber direito quem sou, mas já não ando sozinho. Na beira do rio, a multidão de meus semelhantes outrora invisíveis toma forma enquanto deixamos de arrastar os pés e nos dirigimos céleres para a nascente, por sobre as cinzas das fogueiras de nossos antepassados.

(Variações sobre um texto original de 1994.)

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 09/12/2005
Código do texto: T83207