Confissões

Ele nunca foi indócil, tampouco reclamava da vida da qual dispunha de tempo curto para as tarefas básicas de gente simples tais como: trabalhar, comer, beber, dormir, sorrir, chorar, sonhar, estudar, acertar, errar, viajar, praticar esportes, lazer...

Às vezes, não parecia triste ou feliz. Dizia-se, e por isso se ufanava, que era inumano, algo meio máquina. O rosto semelhante a uma esfinge, olhos pontuais e nigérrimos, pareciam olhos de peixe, sem vida. Os que tentassem qualificá-lo poderiam entendê-lo como sendo frio e extremamente calculista.

De fato, era um tipo alheio de duvidosas intenções. Mas, a depender de quem se desse à perda de tempo de analisá-lo, poderia considerá-lo mal-intencionado apenas no modo como escreve, mas não na totalidade de suas benfazejas ações.

Trabalhava e estudava mais do que precisava. Sabia que ganhava menos do que merecia. Como se não bastasse exercia trabalho voluntarioso em dois locais de sua cidade natal: em um asilo cortava cabelos dos idosos pela manhã e em um hospital público fazia faxina sempre às tardes das Quartas-Feiras.

Profissionais do nosocômio, pacientes e outros empregados reverenciavam sua beatitude, mas só ele sabia o quanto lhe custava, em tempo e sofrimento espiritual essa benevolência.

Entenda-se sofrimento porque o espírito do iluminado (assim se considerava sem presunção de arrogância) assomava todas as infelicidades daqueles locais próprios à expiação. Ele sofria e precisava desse sofrimento. Aceitava tudo com perfeita resignação.

Nesses dias de trabalho voluntarioso aproveitava e fazia uma dieta rica em fibras, frutas e verduras. Conduzia seu próprio alimento. Ninguém compreendia seu desprendimento, mas esse altruísmo fazia parte de sua missão terrena. A ele bastava essa compreensão.

O homem sabia que abnegação era um culto às forças da natureza e necessária à evolução espiritual. Daí sua reverência ou preito aos mais necessitados. Mesmo se conhecendo também carente, ele dispunha de um pouco mais para dividir com os seus protegidos e assistidos.

Quando podia, escrevia tolices, abstrações bobas, sandices pouco ou nada compreendidas. Certa ocasião escreveu em um guardanapo de papel fino, enquanto degustava um pastel com suco de ameixas, na pastelaria sito na Rua Odon Bezerra, Bairro da Liberdade, Campina Grande-PB. A esse texto deu o nome de: "Posse consentida".

Enalteça meus sentidos e encoraja meus medos!

Deixa-me devassar teu corpo, entrar por tuas

aberturas estreitas que as desejo, faminto, ampliar.

Decifra o enigma de meu olhar morto, esgazeado!

Ouça meus gritos, gemidos, silêncio... para sentir

a temperatura do abismal acme do gozo sonhado.

Assoma meu silêncio, meus sinais, minhas fráguas, meus receios.

Recolhe em teu regaço minha dor, meus gritos, soluços, arroubos.

Após conhecer meus abismos e demônios tenha-me por inteiro.