COITADA DA GALINHA!

Éramos adolescentes, minha irmã e eu.

Morávamos com Titia, que tinha três meninos, pequeninos ainda.

Eu não aparentava a idade que tinha, parecia mais nova devido às travessuras que fazia, à rebeldia imprópria de uma menina-moça.

Não me atraiam os afazeres da casa, nem aprender a cozinhar, a bordar, como era costume nas tradicionais famílias mineiras.

As mocinhas tinham que ir aprendendo os afazeres da casa, as prendas domésticas, os segredinhos da cozinha, para um dia serem boas donas de casa, esposas e mães. Eu nem queria saber dessas coisas.

Minha irmã, sim. Dedicava-se ainda mais a aprender as comidas usuais da família, principalmente o famoso “capelleti”, tradicional em nossa família de origem italiana.

E foi por causa desse famoso “capelleti” que aconteceu o que lhes conto.

Vou colocar o leitor a par dessa nossa tradição de família; com certeza assim, conseguirão entrar no “clima” desta narrativa.

“Capelleti” são pequenos pasteizinhos triangulares com as pontinhas opostas unidas, tomando a forma de pequenos chapeuzinhos (capeletti) semelhantes ao do Papa. São recheados de uma pasta feita de carne moída de boi e de porco, com temperos especiais, secretíssimos. São servidos ou com molho de tomate (ao brodo) ou cozidos num gordo e bem temperado caldo de galinha, como sopa.

Em nossa família, o costume era servir a sopa com bastante queijo parmesão ralado por cima.

E minha irmã disse que naquele dia era ela quem iria fazer tudo, etapa por etapa, a fim de aprender. Diga-se de passagem, que o “capelleti” dela é tão gostoso quanto os que eram feitos pelas tias avós, pela bisavó ou por minha mãe. Eu não sei fazer!

Enquanto era feita a massa, aberta, cortada em quadradinhos e montados os chapeuzinhos, o caldo ficava cozinhando, lentamente, com a galinha recheada dentro. A família toda, até as crianças maiorzinhas, participavam todos da elaboração dos “capelleti”, que iam sendo postos em cima do tampo da mesa polvilhado de farinha.

Uma vez, meu pai foi colocando ordenadamente cada um e no final contou 800 “capelleti”! Geralmente essa comida era feita para o Natal ou Ano Novo. Clima de festa!

Esse recheio também tinha seu modo de ser todo especial: era feito com os miúdos da galinha, pão molhado no leite e de novo os secretíssimos temperos. Depois de ser posto no corpo já oco da galinha, a abertura traseira era costurada literalmente com agulha e linha branca!

Dei muitas voltas, mas afinal chegamos no fato que quero contar:

Minha irmã nunca tinha pegado, matado, limpado e recheado uma galinha. Seria sua primeiríssima vez.

A ilustre condenada era escolhida pela minha tia, bonita e gorda (a galinha, não a minha tia, pois ela era belíssima e magra!). A galinha andava, com suas companheiras, solta no quintal, sem saber de seu triste destino. Lá se foi minha irmã pegá-la. Corre daqui, corre dali e afinal, cansadíssimas, as duas, ela foi parar nas mãos de minha irmã.

E pra matá-la?! O costume era colocar um pé sobre as duas asas e o outro sobre as pernas do bicho. Pescoço na mão, tirava-se as penas, batia-se com a lâmina no local do corte (pra “chamar” o sangue) e fazia-se um corte profundo, aparando o sangue em um prato. Depois, esgotado o sangue, o pescoço era enfiado debaixo de uma das asas e esperava-se o final dela.

Na cozinha, no fogão de lenha, no caldeirão grande, a água fervia esperando para escaldar a galinha e assim, ser fácil desprender as penas.

Minha irmã fez o devido ritual e, como a galinha ficou inerte, ela pensou que tinha chegado a hora e, pegando-a pelos pés, a enfiou no caldeirão.

Espanto, gritaria!

A galinha ainda estava viva!

Gargalhada geral!!!

O susto foi tão grande, que minha irmã jogou a galinha pra cima e saiu correndo para a sala. Em contra partida, a pobre coitada da galinha saiu correndo para o quintal, com o pescoço meio cortado, gritando o seu “cóóóóó” desesperado. O corte tinha sido superficial! Tinha sido quase que um arranhão meio fundo...

Providencialmente minha tia interveio e todos nós, as crianças da casa, saímos também correndo atrás da galinha e Titia deu-lhe o golpe de misericórdia!

Na galinha, não na minha irmã, mas acho que titia bem que queria dar-lhe uns petelecos...

Nem preciso dizer que minha irmã nunca mais matou galinha alguma e continua fazendo o maravilhoso “capelleti”, só que outra mulher da família faz o favor de entregar-lhe a “penosa” já falecida, depenada e prontinha para receber o recheio...

O “capelleti” daquele ano ficou na memória da galinha!

Vixe, errei, ficou na memória da família, não da galinha!

Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 28/01/2008
Reeditado em 11/06/2008
Código do texto: T836919