BOA AÇÃO INFELIZ

Esse meu marido arruma cada uma! O carro tá cheio de tralha, tudo pronto para viajarmos: malas, colchões, cachorro, papagaio, o escambal! Já tô ficando cansada de esperar por ele aqui dentro, parada, sem fazer nada. Olho pra rua pra passar o tempo. É véspera de natal, a rua está cheia, as pessoas correm para todo lugar, estão ansiosas também pra viajar e encontrar os familiares. E eu também!

Umas pessoas me chamam a atenção. Aqueles dois ali na esquina, o que será que estão fazendo? Roupas simples, chinelos de dedo, um carrinho de mão, quatro caixas grandes. Um levanta uma caixa e o outro o ajuda a colocá-la em cima do carrinho. Ela quase cai. Tentam novamente. Novo fracasso.

De repente, me deu uma súbita vontade de ir lá perguntar a eles se precisam de ajuda, afinal, é natal, tempo de paz, amor, solidariedade! Chego perto, eles me olham com desconfiança. “O que será que essa madame quer da gente?” Podem estar pensando os dois. Mas consigo me aproximar e manter um contato amistoso com eles.

- Olha, dona, nós ganhamo essas caixa com cesta básica e tamo levano pra cima do morro.

- Deixa que eu levo para vocês, eu estou de carro, é só me dizerem onde é! – Me vi falando isso quase sem consciência do que estava dizendo! É o espírito natalino!

Eles não pensam duas vezes. Talvez pensassem mais na facilidade de levar as caixas pra cima do que no convite estranho de uma dona doida dessas.

- Então vamos, venha um comigo e o outro leva o carrinho pra cima.

Neste instante, um fogo intenso aquece todo o meu corpo. Como é bom ajudar as pessoas! O que é que custa? Nada! Quanta gente está por aí precisando apenas de uma mãozinha e todos se recusam a oferecê-la! Como estou feliz em poder ajudar alguém, principalmente hoje, na véspera do natal!

Eu devia ter sentido que esse calor interior podia ser um aviso, mas continuo minha missão.

- E aí, aonde nós vamos? – Pergunto sem me virar para o lado. Eu não tinha sequer prestado atenção no rosto do indivíduo que me acompanha, se não, notaria a cicatriz que se destacava acima de seu olho esquerdo.

- Vai subindo, dona, vai subindo!

As ruas da favela são estreitas. Claro, eu já sabia disso, trabalhei em um posto de saúde num outro morro, estava um pouco acostumada com esse tipo de lugar. As ruas, de chão batido, há lama em alguns lugares, é o esgoto de algumas casas que se destaca.

De repente ele vira pra mim, na maior tranqüilidade, e diz:

- Olha, dona, depois daquele poste, a senhora tem que apertar o pé porque o pessoal desse lado num gosta muito de mim não. A senhora tem que continuar pra frente, sem olhar nem pros lados. Eu sou sangue bom, num se preocupe! Vai reto!

De novo o calor interior aparece, só que agora é no estômago e sobe até a garganta. Fico paralisada, estática mesmo, sem mexer um músculo sequer, nem piscar eu consigo. Minha primeira reação foi tacar o pé no freio. Ele grita logo:

- Ô dona, cê ta doida? Num pode pará aqui não, os home num gosta de mim, não, já disse, toca pra frente, sô sangue bom!

- Olha, meu rapaz, - a seriedade da voz não soou nada bem naquele instante, principalmente porque eu me virei para ele e consegui prestar atenção naquele rosto um tanto quanto desfigurado por algum daqueles “home”, quem sabe, que estão depois do poste – você quer saber de uma coisa? Eu não vou seguir com você, não senhor. Tenho marido, dois filhos, eu estava quieta lá esperando por eles para viajar, quis fazer uma boa ação pra vocês e não tô gostando nada nada do que eu tô vendo e do que você tá me dizendo! Desce aqui, agora, porque eu não vou continuar, não!

- Já disse, dona, sô sangue bom, ninguém faz nada comigo, não!

- Sangue bom ou não, desce já que eu não vou, não vou e não vou, já disse!

Para minha felicidade, passa ao meu lado o rapaz que trazia o carrinho de mão e eu, mais que depressa abro a porta do carro, falo pra ele me ajudar a tirar as caixas do porta-malas e levar em seu carrinho. Ele não entendeu nada, mas obedeceu sem dizer mínima palavra. O outro, o “sangue bom” salta do outro lado e vai gingando ajudar a carregar as caixas.

E agora? Como vou fazer para sair desse lugar? Ruas estreitas, já disse, como fazer uma manobra aqui e achar a saída desse labirinto que é um morro de favela? Olho para os lados e vejo um senhor aparentemente confiável. Chamo-o. Ele vem, meio desconfiado, me olha de cima a baixo.

- Como eu faço pra sair daqui, moço? – Pergunto e logo depois explico a ele a situação que me levou àquele lugar.

Franzindo a testa, me diz:

-É, dona (que mania esse povo tem de me chamar de dona!), a senhora (e de senhora também!) deu a maior sorte! Num podia subir mesmo não. Aquele pessoal só tava esperando o moleque passar pra descer balar, viu o tamanho do ferro que eles carregava? Era preparado pro moleque!

Sinto que o sangue me falta no rosto, eu tinha que descer aquele morro o mais rápido possível, e aquele homem não estava me ajudando nadinha, muito pelo contrário! – Fala, moço, por onde eu desço pra sair daqui?

Depois de fazer uma manobra que só piloto de rali poderia fazer, desço quase que de olhos fechados, de medo, pavor do que pudesse acontecer, incredulidade do que eu acabara de fazer, alívio, querer encontrar meu marido, meus filhos, dar um beijo em cada um, cheguei! Finalmente estou de novo em frente do prédio onde tudo começou. Minha cara metade me esperava aflito e curioso do que eu pudesse estar fazendo.

Ele veio se aproximando e eu, sem respirar, passei para o banco do carona; não conseguiria viajar dirigindo naquelas condições. Ele se sentou, olhou para mim e, mesmo notando que alguma coisa tinha acontecido tocou viagem. Depois de uns vinte quilômetros é que comecei a lhe contar a infeliz boa ação que quase pôs fim a mais um natal em família que estávamos acostumados a fazer.

Ele olhou pro lado, riu e balbuciou qualquer coisa assim: “Êta mulher de coração e de miolo mole”!