SEU APARICIO

Fazia tempo que eu não encontrava o seu Aparicio. Havia trabalhado com meu pai, fazendo bicos de balconista, num boteco do Tombo, anos atrás, antes daquela praia virar point de endinheirados abstêmios. Hoje em dia não tem mais boteco no Tombo, muito menos boteco de pescadores. Ao contrário, alongam-se pela orla os quiosques com vitamina, sucos e sanduíches naturais. Mas, voltando ao seu Aparicio, encontrei-o sentado na fila de espera do caixa do banco, esperando o painel anunciar seu número de senha.

Ficamos ali, conversando, ele todo sério, meio preocupado. Havia sido demitido do emprego de tantos anos. Caseiro.

- Mas como é que o seu patrão, o seu Norberto, foi mandar embora um homem de confiança como o senhor, seu Aparicio?

- Pois é, você veja, menino. Tantos anos naquela casa. Quase quarenta.

- Que coisa. Mas o senhor não se preocupe, com tantos anos de emprego deve ter um bom dinheiro de indenização pra receber.

- Isso eu já não sei. Eles só me registraram de uns dez anos pra cá, depois que os meninos dele assumiram os negócios. O seu Norberto tá muito velho, coitado, depois que a patroa morreu ele quase nem fala mais direito. Uma tristeza, aquele homem tão forte, tão poderoso, dono de tanta coisa, conhecedor do mundo todo de tanta viagem. Agora tá lá, largado, os filhos não ligam. Chega a dar uma revolta na gente.

- Mas quarenta anos de casa, e só registraram dez? Tá errado, seu Aparicio. Vai ver o senhor tem é muito dinheiro pra receber dessa gente, aí. Se quiser, posso indicar uns amigos, que ajudam o senhor nesse negócio.

- Deixa isso pra lá, menino. Bobagem. Seu Norberto não foi meu patrão, seu Norberto foi um irmão, um amigo que eu tive durante minha vida toda. Cheguei naquela casa com vinte anos, recém-casado, criei meus filhos nela. Saio agora, viúvo e com netos. A vida é assim mesmo, as coisas nunca são da gente. Imagina, cobrar seu Norberto agora. Não tem cabimento, não é coisa certa.

- Quarenta anos de trabalho, hein, seu Aparicio? É uma vida.

- Então. E o menino faz o quê, aqui?

- Nada demais. Vim resolver um negócio aí das minhas férias.

- Férias, é? Sabe que nunca tirei férias?

- Nunca, seu Aparicio? Trabalhou tanto, sem férias?

- Trabalho, trabalho. Que trabalho, nada. Aquilo pra mim nunca foi trabalho. Lá era a minha casa, eu vivi, a bem dizer, a vida inteira lá. Trabalho é quando o camarada chega, bate cartão, tem uniforme, horário de saída, essas coisas. Eu nunca fui assim. O senhor sabe que, às vezes, quando a patroa ainda era viva, eles brigavam e eu cheguei a acordar algumas vezes, ouvindo o choro baixinho do seu Norberto pela casa? Às vezes eu levantava, levava um vinho, um cigarrinho, ficávamos conversando até raiar o dia. Aí ele melhorava, ia dormir. E eu cuidar da casa, do jardim, feliz de ter ajudado ele.

- E depois?

- Ah, depois? Depois, o menino já imagina. Era um amor danado, os dois chegavam a passar duas noites e um dia inteirinhos sem sair do quarto, era um sossego. Às vezes eu me preocupava, queria ir lá, bater na porta, ver se estava tudo bem. Mas aí vinha uma gaitada de lá de dentro e eu ia cuidar das coisas que tinha que fazer.

- Por que o senhor não vai falar com o seu Norberto, ele há de lhe fazer justiça, recompensar.

- Recompensar o quê, menino? Está tudo certo, não tem nada que recompensar, não.

- Olha lá, seu Aparicio, o senhor está perdendo dinheiro, e muito. O senhor era caseiro, não era? Tinha seus afazeres, suas responsabilidades, seu... trabalho, ora bolas. Acha justo sair sem nada?

- Sem nada, não. Estou com um cheque aqui que o Norbertinho me deu, vim descontar e ajudar a compra o material escolar dos netos. E ainda vai dar pra guardar um pouquinho na caderneta.

- Tá certo, seu Aparicio. Se o senhor acha que está certo, então está certo. Mas me diga uma coisa: o senhor foi demitido por quê?

- Olha, eu já estava desconfiado que a coisa não estava muito boa pro meu lado. De um tempo pra cá, depois que o seu Norberto ficou viúvo e parou de vez de vir, dizem que nem come direito. Fica lá, no quarto, só remoendo as lembranças lá dele. Dizem que nem nas empresas vai mais.

- Certo.

- Quem começou a vir toda semana foi o Norbertinho, o mais velho. E eu comecei a perceber que ele não gostava muito do meu jeito, a senhora dele queria alguém que cozinhasse, mandou reformar o canil, achou que eu não estava bom pra dirigir a caminhonete, cismou que eu tinha problema de vista, essas coisas. Quando foi na semana retrasada, me mandou lavar uma moto nova, dessas de competição, que ele tinha acabado de comprar, pra ele andar no outro dia.

- Mas se ele ia andar de moto no outro dia, pra que mandou lavar?

- Pois foi exatamente o que eu perguntei a ele, menino, mas ele não gostou. Não falou nada, mas vi que não gostou. Acabei de tratar dos cachorros e puxei a mangueira pra começar a lavar. Ele veio e disse que era pra lavar com balde, que mangueira gastava muita água.

- Que enrolação, hein, seu Aparicio?

- Pois é, mas eu nunca fui de ir contra ordem de patrão, mandou fazer, eu vou e faço. Quando acabei de lavar ele veio todo arrogante, bravo, trazia um dos filhos amarelos dele no colo.

- Bravo?

- Bravo, nervoso que só. Veio gritando comigo, “o senhor acha que esta moto está bem lavada”? Eu disse que sim, que não sabia lavar de outro jeito, ele mandou eu lavar de novo até que ficasse direito, “do jeito certo, que é o jeito certo, desse jeito não sei mais o que eu faço com o senhor”.

- E o senhor?

- Bom, eu me levantei, ainda segurando a bucha cheia de sabão e disse que ele então lavasse, pra eu ficar olhando e aprender como é que ele gostava.

- O senhor disse isso mesmo, seu Aparicio?

- Claro, menino, eu ia ver como é que ele lavava o raio da moto pra depois fazer direito, e não ficar tomando bronca dele. Não tá certo?

- Tá, tá certo, sim. Sob esse ponto de vista, certíssimo.

- Então. Foi o que eu pensei. E ele me deixou lá, de pé, segurando a bucha, deu meia-volta e não olhou mais pra minha cara. No outro dia, que foi ontem, me chamou e disse, muito gentilmente, que ia vender a casa, e como ninguém ia mais vir pra cá eles, não iam mais precisar dos meus serviços.

- E a moto?

- Ah, menino, é linda, verde clarinha, bem brilhante. Ficou lá na garagem, coberta com uma lona, cheia de cadeados. Linda, a moto. E olha que eu não sou de reparar nesse negócio de carro, moto... O menino sabe andar de moto?

- Não, seu Aparicio. Bom, o senhor não quer mesmo que eu lhe indique ninguém pra ver esse negócio dos seus direitos?

- Já disse, está tudo certo. Agora vou ficar uns dez dias na casa do meu filho, só olhando pro tempo, tomando uns negocinhos, fazendo hora. Depois eu vou correr atrás de alguma coisa.

- Vai morar com algum dos seus filhos?

- Ih, esse negócio de morar com filho não dá certo, não. Ainda vou ver como eu me viro. Se seu pai fosse vivo, com certeza me arranjava um bico qualquer aí, pra ganhar um trocado.

- Pois é, seu Aparicio.

- Ô menino, aquele número piscando ali é o meu?

- Não, é o meu. Quer ir na minha frente?

- Não, menino, vá você, que é a sua vez. Esse negócio de passar na frente dos outros não é certo. Vou quando for meu número, que deve ser o próximo.

- Então, até logo, seu Aparicio. E obrigado. E boa sorte.

- Não tem de quê, menino. E veja se pára com essas idéias suas, aí. Senão quem vai precisar de sorte é você.

Seu Aparicio foi atendido no caixa ao lado do que eu estava. Ainda me despedi dele mais uma vez, envergonhado pela minha falta de escrúpulos frente a sentimentos que eu nunca compreendi. E que talvez não compreenda nunca.

Lá fora a vida, ao contrário do que eu por um momento pensara, ainda era a mesma.

Benilson Toniolo
Enviado por Benilson Toniolo em 11/02/2008
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