TERRA E VIDA

O que mais me trai num jardim é a vida que exala dele. O vento jogando com as folhas e invertendo a posição dos galhos, o colorido das pétalas, a descoberta de uma teia de aranha nova, entre uma e outra roseira. Os gerânios que se precipitam, a sálvia que nasce das frestas, a margarida que surge inesperadamente no meio do mato. O trabalho das formigas, o eterno emudecimento dos caracóis, o arrastar dolorido das lesmas pela relva, os trevos infestando a grama. Botões prematuros, minhocas revolvendo o útero da terra, a grossura de certos caules, falos verdes e imensos apontando para o infinito. Os colibris apressados, o húmus conquistando o muro, frágeis barbantes sustentando hastes até que fiquem robustas, e se sustentem.

Jardins sintetizam a vida, em tudo que nela há de fecundação, crescimento e extinção. Os restos de plantas mortas embrenhando-se terra adentro pela ação da chuva, num sagrado moto-contínuo de constante milagre. Os vasos pacientes a gerar e manter raízes, o regador em um canto, pronto a socorrer a negligência da água, bastando para isso que seja usado. A ação do sol aquecendo num dia, e esturricando no outro. Num dia fornece a vida, no outro a arranca com suas labaredas insaciáveis de fogo abrasador. A chuva libertadora. O canto dos pássaros na manhã de todo dia, seus gritos de amor que ninguém mais ouve, as larvas contorcendo-se entre as pedras: os segredos acumulados sob as pedras.

Por vezes o derramamento de esterco ou outro tipo de adubo orgânico, a troca da terra preta, as vitaminas vegetais anunciadas na promoção da loja de rações.

A transferência do vaso para a terra pura, o mágico sabor que dela exala quando removida, tocada, viva. A terra, esta mãe dedicada e infinita. As unhas recheadas de negro perfume, e única tez.

Pena que, enquanto crescemos, esquecemos do gosto que há em mexer com a terra. Passamos pela adolescência e chegamos à idade adulta sem, sequer, reparar no que há nas plantas e nas flores. Muitos tivemos, inclusive, jardins e hortas dentro de casa, mantidos pelas mães, tias , avós. E somente depois de adultos, com os filhos em crescimento, é que voltamos sem querer à infância, e nos damos conta que tivemos o privilégio de ter em casa (no quintal na varanda, na área de serviço) um pedaço de terra com coisas verdes em cima. E, embaixo, muita vida correndo a um ritmo impensável. E concluímos que todos os dias em que não se olhou, nem por um único segundo, para o jardim, foram dias perdidos. Caímos, sem reação, às armadilhas que o mundo da sobrevivência nos impôs. E negamos ao nosso espírito a doce visão do jardim que, mudo, só nos observava.

Há quem diga que quando alguém, de repente, passa a cuidar de plantas, é sinal que está à morte. Que ela já se avizinha. Alegam para isso que a preocupação inconsciente com as coisas da terra é uma preparação para voltar a ela, e para por ela ser recebido. Pode ser. Que se cuidem, portanto, as floristas e os decoradores.

Cuidemos, pois, dos nossos pedaços de terra, das nossas plantas, dos pequenos bichos que nela habitam, como devemos cuidar de nós mesmos. No fundo, somos todos feitos da mesma matéria: a vida.

Benilson Toniolo
Enviado por Benilson Toniolo em 12/02/2008
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