Quando o Ovo é Isto e a Galinha é Aquilo.

"O copo está meio cheio ou meio vazio" traz a mesma conotação de "quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?". Mas, a perspectiva muda aos olhos de quem contempla o copo e nem me apetece falar dele. Para falar da galinha e do ovo exige um conhecimento anterior: existencial, eu diria.

Existirá somente a conturbada história do ovo e sua galinha? Veremos. Aliás, eu vivi nessa época e fui o próprio ovo. Era uma época em que galinha não era galinha, senão outra ave e ela ciscava para frente, sempre para frente, até o dia fatídico do acidente.

Lá estava a bendita a caminhar entre as gramíneas com a graciosidade de uma pata prenha. Não era pata, nem galinha, era AQUILO mesmo. AQUILO era fêmea e, devido a uma circunstancialidade Lamarckista, ela tinha perdido o seu único dente, passando a viver como banguela.

Não queria provar nada que não fosse líqüido e dizia-se, constantemente, doente. Pobre AQUILO, não tinha nem um ESSE que a fizesse feliz. Não sorria, não falava a não ser do seu tão famigerado "dente-ciso" - frontal ao bico. Esbravejava tanto que não possuía amigos. Aliás, AQUILO era a última de uma espécie potencialmente extinta pelos grandes reptéis que viam na feiúra dessas aves a disposição de uma carne macia.

Nesse dia da caminhada, cabisbaixa a pobre AQUILO pensava na vida. Ciscava para frente com a mesma impetuosidade que batia o seu bico. Os pensamentos dela eram o que agora são meus, tais como o sentido do verbo existir e a existência da sensação, os pejorativos do sexo, a inoportunidade do amor e a reciprocidade do alheio. Ela pensava com tanto gabarito nessas amenidades humanóides que eu ouso dizer que temos descendência direta d'AQUILO mesmo, propriamente dita.

É com efeito que a pobre ave descobriu que o sentido de existir é de fato ter sensações. Estranhou quando a resposta advinha da pergunta e vice-versa. Coçou o dente que não existia, mas que ainda podia sentir como a veracidade do membro-fantasma e, então, entendeu.

Quanto aos pejorativos do sexo, ela percebeu que se revelasse poderia ser setenciada como uma ave promíscua e não condizia com o correto. AQUILO era liberal e tinha pelos pejorativos o devido respeito, não via mal nenhum em ser ave ousada. Mas, o mundo foi feito de pré-julgamentos e ela preferia calar-se diante do assunto complexo. Eu entendo AQUILO, aliás eu devia ter herdado essa característica dela, pois digo que é provável que eu tenha sofrido alguma deleção cromossômica incalculável.

Bom, a inoportunidade do amor é um conceito fácil e um tanto quanto intrigante. AQUILO pensava que o amor chegava na nossa vida apenas quando não nos sentiamos prontos. Mas, se existir é sentir, penso que já estamos prontos para o amor logo em que somos concebidos. Paciência, AQUILO disse e deveria ser assim, ponto.

Na verdade, ela não acreditava em amor, afinal era o único exemplar da espécie e nunca seria amada, muito menos amaria. O único resquício de amor que sentira era pelo seu dente, inexistente naquele momento.

A reciprocidade do alheio é uma contradição à inoportunidade do amor, pois implica que por ausência desse sentimento, buscamos e até forçamos a existência dele no que não o compete. Criação - era esse o nome que AQUILO dava para essa troca infeliz - é quando inventamos um mito romântico e esquecemos que o importante mesmo é o dente.

Foi aqui, nesse cenário, intinerante sobre as gramíneas, que AQUILO conheceu um ESSE. Ele era uma espécie de pica-pau sem bico, mas tinha muitos dentes, além de uma vivacidade e um linguajar enlouqüente. Quando ESSE falava, os seus dentes não se moviam, ou seja, eram de uma inércia que encantava a nossa estimada ave desdentadao. Digo estimada como quem tem apreço pelo que nos promoveu algum dia na Terra; AQUILO mais do que qualquer primata merecia essa estima.

Nesse momento houve a aproximação, como o encantamento à primeira vista. Não sei se a iniciativa partiu d'ESSE, mas quase aposto que foi ela quem deu a primeira demonstração de interesse. Ela era, sem dúvidas, audaciosa.

Cabe a mim descrever ESSE, ave falastrona que caía sobre as suas próprias pernas, como quem cisca para trás, e é aqui que começa de fato essa ligeira história.

Não sei o que ele e ela conversaram, mas aflorou n'Aquilo o resquício de amor pelo seu dente, na cobiça do que era do outro, claro. Então, ela percebeu a oportunidade do amor, sim ele era oportuno, porém não era perfeito: ele ciscava para trás. Mero detalhe, afinal o membro-fantasma tinha morrido.

ESSE existia e AQUILO sentia sua existência como quem sorve a última molécula de água do meio. Sentia e sentia tanto que inexistia de tão perplexa. Ele como um macho protuberante, demonstrou interesse pelas amenidades humanóides da intrigante ave. Afirmo que não sei como dialogaram, afinal pertenciam a espécies diferentes e, portanto, língüas distintas. Suponho que os pejorativos do sexo tenham entrado nesse trecho oculto da história, aliás pejorativos não faltaram ao casal até o dia do parto.

O parto era o resultado da pluralidade de pejorativos diferentes. O casal de pais apaixonados ansiavam pelo nascimento de uma ave nova, cheia de dentes e com cisos que refletissem a união das multicores, além de claro ciscar para frente.

Sabe-se lá o que houve na hora do crossing-over ou seja lá o que tenha acontecido, nasceu um ISTO. ISTO era banguela e ciscava para trás.

Pobres pais, a ilusão do amor não fabrica milagres. Foi assim que o que tinha dentro do ovo veio ao mundo: um ser que não voava direito, portanto não se pode dizer que era pássaro, mas ave por deveras terá sido; que tinha tantas penas quanto o mais sofrêgo sentimento que é o penar; e o mais importante, ciscava para trás, não como um gesto de ausência de sorte e, sim, como quem busca achar o próprio dente em meio ao que não há para ciscar.