A Ditadura Militar no Brasil
                                                      Para Dina Sfat e Nara Leão.

     As canções e as vozes de Vinícius (1), Tom e Toquinho, que não se empenharam diretamente na luta, muito ajudaram. 

     Explico: Chico Buarque, Milton Nascimento e Caetano Veloso eram uma força; já estes mais Tom, Vinícius e Toquinho, uma força maior ainda. 
     Hoje entendo melhor por que a Ditadura não os aniquilou.  Deixou-lhe opções, como o exílio (Chico na Itália/França e Catano na Inglaterra).
     Sim porque uma ação fulminante contra todo o grupo iria atrair a atenção do Mundo --- e consequentes protestos, esses intangíveis. 
  Alcanço melhor hoje, também, por que não fomos incomodados, nem em Nova Iguaçu nem em Heliópolis (bairro periférico): achavam-nos insignificantes demais para a Revolução, que tinha inumeráveis vozes mais altas a calar. 
     Lutadores contra a Ditadura (em Nova iguaçu): 
     Adalberto Cantalice, livreiro humilde, com sua “Barraca da Cultura”, na Praça da Liberdade. 
     Arthur Cantalice, irmão de Adalberto.
     Roberto, então uma criança, filho de Adalberto. 
     Alpha, a Estrela Matutina, velhinha enamorada do Teatro. 
     Celso Mosciaro (ator, diretor teatral e animador cultural). 
     Charles Serdeira, diretor e ator teatral. 
     Georgina Martins, poetisa, declamadora e ativista.
     Luiz Washington, ator e diretor teatral, o mais fechado de todos, porém super-confiável e atuante. 
     Manoel Góes Telles, o editor-chefe do jornal
O Pontual.
     Mário das Neves, ator e ativista político.
     Marco Nanini, ator, diretor teatral e ativista político. 
     Moduam Matus, poeta, animador cultural e ativista.
     Roberto Bayma, diretor teatral. 
     Silne de Lima, professora, animadora cultural e ativista.
     Roberto de Britto, ator e diretor teatral, animador cultural, ativista político, que mantinha uma coluna n'
O Pontual, onde divulgava todos os eventos culturais relevantes da Baixada Fluminense, em especial sobre teatro. 
     Robinson Belém de Azeredo, editor-chefe do jornal
Correio da Lavoura.

     Embora eu não saiba como explicar isto bem, Roberto mantinha a Censura, a Polícia Política (DOPS) e o DOI-Codi
(2) a uma distância segura das nossas atividades culturais, teatrais ou mesmo políticas.  Relacionava-se bem com os responsáveis pela censura local, incensava-os em sua coluna, amenamente.
     Adianto porém: sujeito honesto e gente nossa!  Nada de bajulações rasteiras, traições ou entregações! 

     Fiz dois cursos de teatro em Nova Iguaçu, no Teatro Arcádia (3).  Era a arte pela arte: não se pronunciava sequer a palavra política. 

     Participei do Cineclube In Foco, que atuava na SESNI (atual UNIG), por concessão do professor Júlio César da Silva, então diretor do Departamento de Letras da Faculdade. 
     Os filmes só tinham a ver com o momento político; após, vinham os debates democráticos, conscientizadores. 
     Júlio César era também Secretário de Cultura de Nova Iguaçu, por nomeação do então prefeito Ruy de Queiroz (por sua vez nomeado pela Ditadura Militar --- como aliás em todo o Brasil, onde os governadores eram escolhidos pelo presidente e, por sua vez, escolhiam os prefeitos). 
     Os cem milhões de brasileiros não tinham o direito de votar nem serem votados.  Sequer opinar. 
     Manifestar-se, só respeitosamente e em concordância ao Governo.
    (Jamais ouvi que alguém tivesse sido perseguido ou demitido pelo prefeito Ruy, por questões políticas ou ideológicas.  E ele era inteiramente integrado ao sistema radical dos generais...) 

     Dirigi um grupo de teatro que atuava na Igreja Matriz São Judas Tadeu de Heliópolis, por mais de um ano.  Representamos mais esquetes que peças longas. 
     Livros de Augusto Boal que li e fiz circular no grupo: Stop: c’est magique!, Teatro do Oprimido e um outro.  Além de textos esparsos.
     De mais sério o grupo fez leituras de Morte e Vida Severina, de João Cabral; não chegou, no entanto, a montá-la. 

     Esse mesmo grupo fez recitais de poesia na Praça de Heliópolis, ao anoitecer.  Celebrava Castro Alves, Maiakovsky, Brecht etc. 

    Nunca fomos ameaçados, censurados ou presos por militares, agentes do Governo, policiais ou outras autoridades. 

     Eu participava também do Grupo Jovem e do Conselho Comunitário da Igreja; o padre era Matteo Vivalda, um baluarte contra os desmandos, a opressão do regime.  Havia várias irmãs de caridade do Lar-Escola São Judas Tadeu, educandário com sede própria no bairro --- todas apaixonadamente pró-povo.  O inspirador maior: o Bispo Diocesano Dom Adriano Hypolito
     Depois do teatro, reativei e dirigi a biblioteca da igreja, dando-lhe um nome: Biblioteca José Veríssimo.  Durante dois anos.

     Preso mesmo só fui uma vez, ao participar da manifestação pela liberdade de expressão cultural em Nova Iguaçu, no início da década de 1970.  Eu e mais uns dez...  Espalharam-nos por diferentes regiões: alguns em Nova Iguaçu, outros em Niterói, outros ainda no centro do Rio.  Eu fiquei confinado no Regimento Marechal Caetano de Farias, no Centro. 
     Como não havia Internet, permaneci dezenove dias lá, enquanto eles verificavam possíveis registros de detenção minha por delegacias, quartéis, órgãos de segurança etc.  Tudo negativo.  (Depois fui transferido para o Batalhão de Polícia Florestal, em São Gonçalo, município próximo a Niterói).
      Perguntará o espantado leitor:  E as torturas?  Os maus-tratos?  Os interrogatórios brutais?  A comida péssima?  A proibição de visitas, telefonemas etc.? 
     Não houve nada disso, no Regimento.  Éramos bem tratados, comida boa, camas limpas, vigiados por oficiais e praças rudes mas ponderados. 
     Ficamos na ala dos "presos políticos" (havia ainda as alas dos "presos comuns", dos "presos militares" e dos "presos da polícia civil").(4)  
     Nunca presenciei brigas, discriminações ou privilégios para ninguém.  O único registro negativo que faço: a nossa ala não tinha, salvo engano, direito a visitas de advogados.
     Fui libertado por sorte; caso contrário, passaria o reveillon atrás das grades, como passaram um diretor de colégio e um engenheiro paulistas --- ambos com alvará de soltura assinados há tempo pelo juiz e retidos em poder do serviço reservado.
    Havia ainda um médico cinquentão, também paulista, solene, de origem árabe (Fuad?  Fued?  Assad?  Assed?  Haddad?  Difícil lembrar...).
     Ficam o registro de sua altruísta dedicação à Medicina e da condescendência do comandante com as consultas, orientações e pequenas cirurgias que realizava na enfermaria do batalhão. 
     Nesses curtos dias, ninguém me visitou: parentes, amigos ou inimigos.  Nem ninguém, depois disso, comentou nada a respeito.  Acho natural.

     O equívoco da minha prisão gerou um efeito curioso: foi ali que os outros presos políticos me doutrinaram, com uma sutileza e objetividade de espantar.  Tomei consciência do Brasil, suas contradições e problemas.  E a consciência política, uma vez adquirida, só se expande e aprofunda --- jamais regride.
     Aí sim comecei a dar trabalho: fui libertado (após a estada no BPFMA), e logo “contatos” da esquerda me convidaram (cooptaram) para participar de reuniões reservadas.  (Houve também convites atraentes para integrar-me ao esquema repressor). 
     Dali à prática subversiva foi um pulo: iniciei treinamento de sobrevivência na serra das Paineiras e, em seguida, em Tinguá, imensa reserva fluminense. Tínhamos boas armas e munição bastante.  Não recebíamos ordens nem armas nos primeiros três dias, só doutrinação e liberdade para circular e reconhecer bem o local.  Como fui menino do interior, bicho do mato (Espírito Santo), e passei a infância em... Tinguá, não vi problema algum.
     Enfim, as armas leves: revólver Taurus cal 38 e pistola Magnum 765.  Uniformes ainda não.
     Não existiam ainda armas como o fuzil M-16 - calibre 5.56 (R$ 40 mil).  Nem a metralhadora Ponto Trinta (R$ 60 mil), capaz de derrubar um helicóptero.
     Nos alvos imóveis --- que pontaria!  Quando porém a ordem era para abater um animal que corria, ou que bebia água, ou que passeava inocentemente, o revólver engasgava, a pistola falhava. 
     "Puta que pariu!", dizia o monitor de tiro, observado silenciosamente pelo chefe do grupo.  "Esse cavalo não mata nem uma barata!"
    Não passei da segunda semana: desarmado, fui a julgamento, cujo veredicto dos maiorais, secreto, só conheceria à noite.  Imaginem o meu assombro, o meu medo. 
     Acusações:
Um covarde completo.
Um fracasso total como guerrilheiro.
Não corria nem meia légua na mata fechada.
Não via o mais óbvio "inimigo" oculto.
À noite, confundiam-me os sons naturais e os produzidos pela milícia...
Enfim: um contemplativo idiota!  Um idealista sem futuro!  Um sonhador sem perdão!  Um banana!

     Esta a conclusão, unânime como a escuridão da mata.
     Nenhuma suspeita de espionagem ou traição, pelo menos.  Salvo.
     Ainda ponderei que era perito em redigir e datilografar documentos; atalhou-me alguém superiormente:
     --- Na guerra não tem ofício, tem bala!  É só chumbo grosso!

     E fui inapelavelmente escoltado até a orla da floresta.
     Senti-me a própria Chapeuzinho Vermelho rejeitada pelo Lobo.

     De um modo simples e cúmplice, alguém do grupo me entregou o Taurus 38,  doze balas e cem dólares.  
     --- Si necesario.  Contra los otros... --- com um gesto formal.
     Ao diabo com sua continência.  Fui!

      O dinheiro gastei; a arma, essa me acompanhou solteiro, casado e separado, e continua vazia, acautelada na casa do meu ex-sogro.  Registrada e legal.

     Apenas hoje descubro por quê me deixaram ir embora tão rápido e vivo: outras serventias à Resistência eu talvez teria, fora da guerrilha: e não é que os filhos-da-puta acertaram?
     Nascia naquela noite um futuro Papai Noel.  E um futuro militante do PT.  E um amante da Democracia.

     Movimentos anti-ditadura (alguns): MR-8, VAR-Palmares e ALN (Aliança Renovadora Nacional).
   Outros focos de resistência e combate: a Guerrilha do Caparaó e a Guerrilha do Araguaia.

     Dos outros detidos na passeata de protesto, reencontrei alguns, em perfeita saúde e juízo, uns continuando na luta, outros acomodados; e dos demais não tive mais nenhuma notícia concreta.
     Voltei para a Igreja Católica, a biblioteca, comecei o curso de Letras (primeiro na Faculdade São Judas Tadeu, no Encantado, concluindo-a na Fundação Educacional Souza Marques, em Cascadura).
     Fiz em seguida Pedagogia, na Sociedade Unificada Augusto Motta - hoje Universidade.
     Iniciei, ao mesmo tempo, o curso de Direito, que parei para concluir Pedagogia e ao qual nunca mais voltei.  Que arrependimento!

     Mais tarde, já morando no Rio, tentei me integrar ao Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro; fui no entanto esnobado, menosprezado, ignorado por José Louzeiro, Carlos Eduardo Novaes, Raymundo Faoro, Nélida Piñon, Rubem Fonseca e Antônio Torres, todos igualmente anti-ditadura.  Tinham-me como espião infiltrado.  Pode?!
     Não, não os perdoo. 

     Existe todavia uma altíssima lembrança, sobrepujante: a do venerável Antônio Houaiss, um cavalheiro medieval de tão completo.

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     Abriam espaço em suas colunas para artigos, notícias e comunicados meus sobre atividades culturais:
Arnaldo Niskier (
Jornal dos Sports),
Manoel Góes Telles (
O Pontual – Nova Iguaçu),
Nelson Motta (
O Globo) e
Robinson Belém de Azeredo (
Correio da Lavoura – Nova Iguaçu).
     E a seção de cartas e cinema do
Jornal do Brasil.

                                                   
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     Estão mortos os generais-presidentes Humberto de Alencar Castello Branco, Emílio Garrastazu Médici, Arthur da Costa e Silva, João Baptista de Oliveira Figueiredo e Ernesto Geisel.  Mortos também o general Golbery do Couto e Silva e o coronel Mário Andreazza.  E ainda o médico torturador-mor Amilcar Lobo e o superministro Armando Falcão.  Não precisam de preces, bênçãos ou imprecações.  Desempenharam bem seu papel maldito. 

     Casei-me, tive uma filha, separei-me.
     Fiz vários concursos públicos, passei em todos e tomei posse num deles.  
 
     Não deveria haver perdão literário para o escritor que não encarou a sua época de modo crítico, humano, solidário --- e sequer tentou transformá-la com ou sem a sua arte.  Todavia, quem sou eu para julgar?  E que sei eu dos infindáveis medos humanos?!
     

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Nem sei por que escrevi tanto.  Resgatar-me?  Provar algo --- que vivi, amei, me indignei e protestei? --- Tudo, talvez. 

     Tenho sessenta e dois anos e saúde frágil.  Quando chegar a minha hora, ir-me-ei em paz, feliz, suavizado. 

     Ninguém é apolítico.  Então reverencio o povo brasileiro, ou mesmo a Raça Humana, que fez e sofreu tantas revoluções --- e jamais as testemunhou somente.  Atuando mais, menos ou nem atuando, colaborou para que os fatos acontecessem: houve, portanto, mudanças, evolução, progresso.  Saímos do chão, voltamos ao chão.  Só que já outro chão, porque outras mentes.  Pertencemos à Humanidade! 
     Hoje o Brasil é um Estado Democrático de Direito. Preze isto, juventude!

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          Notas:
   
  1 - Em sua coluna d'O Globo de 11/10/2007, Ancelmo Gois nos revela que "o Tribunal Regional Federal do Rio decidiu ontem a favor das filhas de Vinicius de Moraes, aposentado compulsoriamente pelo AI-5 como primeiro secretário do Itamaraty.
     Elas receberão uns R$ 600 mil por danos morais, além de atrasados desde a aposentadoria, em 1969. O relator foi desembargador Frederico Gueiros."

     2 - DOI-Codi - Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna. 

     3 - Nome derivado da extinta Arcádia Iguaçuana de Letras (atualmente, ali funciona um curso preparatório para concursos públicos).

     4 - Não fora ainda criado o Batalhão Especial Prisional, destinado aos presos militares.

 

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          Fontes de consulta:
AI-5 - Ato Institucional Número 5
 
AS MULHERES E A DITADURA MILITAR NO BRASIL
(artigo de Ana Maria Colling)
E-mail:  acolling@unijui.tche.br   


Memórias do Cárcere
Enviado por Jô do Recanto das Letras em 13/02/2008
Reeditado em 12/10/2013
Código do texto: T858564
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