O dia em que me descobri

Era um local deserto, uma praia; ao longe o horizonte esmaecia - neblina, mar e céu num abraço verde-azulado, confuso e diáfano. Não se podia distinguir limites, o sol ainda não conseguia atravessar a muralha densa de nuvens róseas que no alto se desenhava, como que trêmula, anunciando um dia a ser inaugurado.

A areia grossa e cintilante gemia sob meus pés; a água fria das ondas respingava em minhas pernas, e tudo era simples, calmo e claro como a vida deveria ser, sempre. Veio-me imediatamente à lembrança a letra de 'Dust in the Wind', a música de minha vida: “nothing lasts forever but the earth and sky” - nada dura para sempre além da terra e do céu. Eu sou finita. Meus pés um dia não mais caminharão sobre as areias vibrantes, minha pele não mais sentirá o frio da água salgada que as ondas me legavam. Minha mente um dia terá se esquecido de que pensei essas coisas.

A consciência me veio rápida e estridente, na forma de uma gaivota e seu grito lancinante. Baixou o vôo, deu um rasante na água e colheu um peixe. E assim como veio se foi, engolida pela névoa densa do horizonte. O grito dela ainda ecoava em meus ouvidos, enquanto a água, agora mais gelada, já cobria minhas pernas até os joelhos. O grito da gaivota me distraiu do caminho à beira-mar, e eu, hipnotizada, sem querer entrei mais fundo no mar aberto, como se quisesse, também para mim, um peixe.

Subitamente passei a ouvir vozes, confusas vozes metálicas que anunciavam ou avisavam algo que não conseguia compreender. Aos poucos as vozes foram ficando mais claras e comecei a tomar consciência de mim mesma. Acordei, era inverno, o rádio relógio havia iniciado sua jornada antes da minha, para que eu pudesse enfim sair do meu torpor: seis horas. Lembrei-me da areia, das ondas brancas, da névoa, da gaivota. E lentamente fui sentindo o frio da manhã que mal começara.

Nesse dia me descobri assim, empurrando para o lado o cobertor e a minha imortalidade. Nothing lasts forever, nem eu nem as frias noites de inverno.

(Publicado no fórum do Recanto das Letras em 17/02/2008)