As mãos do homem

Impossível esquecer um certo homem que, dentre tantos que conheci, conseguiu simplesmente passar por mim e, sem nada dizer, tirar minha paz. Nunca conversamos, nunca nos tocamos e é provável que ele nunca na vida sequer tenha me visto. Mas a sua lembrança me perseguiria por anos a fio.

Foi num ônibus. Eu estava sentada, fardada, voltando da escola, a transpirar cansaço e passando os olhos distraidamente pelas ruas que se moviam, quando ele entrou, causando um certo rubor geral. Uma certa sensação geral de desviar olhares.

Chamou-me atenção a sua pele: queimada de sol. Chamou-me atenção a sua magreza aidética, seu cheiro de quem não vê água há tempos e, acima de tudo, suas mãos. As mãos do homem falavam por mil palavras.

Tremiam ao sabor maligno de alguma doença degenerativa qualquer, dessas que poderiam matar, mas, num arroubo de crueldade, deixam o serviço por terminar, condenando o infeliz a vagar semi-vivo pelos becos da vida, sem passado, sem perspectivas de futuro e resumindo seu presente a um estender de mãos, trêmulas, a um pote de sorvete onde ele quer ver moedas.

Pois caminhava, trôpego, desengonçado, na tentativa de aprumar o corpo já disforme. Pendia para os lados, quase a derramar a saliva que escorria de sua boca nos enojados rostos sem expressão dos passageiros. O asco nos invadiu a todos. Eu não fui exceção.

Senti duas formas de nojo. Uma, a física, advinda do mau cheiro, da visão dos poucos dentes amarelos, da salivação, enfim, da apresentação geral do mendigo. Outra, pior, a moral. Asco intelectual, dessas mentes fechadas que ordenam o fechamento decorações e olhos para a mazela viva da nossa sociedade. Dessas pessoas que dão uma moeda e acreditam estar fazendo sua parte para a construção de um mundo mais justo.

E eu consegui ser aquele homem. Entrando sob sua pele, compreendi minha cruz e senti o escarro polido e controlado de todos ao redor. Respirei o ar envenenado de indiferença que empestou o ônibus.

Minha parada chegou, e eu me lembrei de que meu destino era mais bonito. Eu podia descer e ser feliz. Ele ficava, a esmolar. E eu sequer tinha moeda para lhe dar. Desci do ônibus, caminhei até em casa e lhe dei uma crônica. Crônicas não aliviam o sofrer de mãos trêmulas. Mas para não deixar as minhas abanando, ei-la a você, homem de mãos inesquecíveis.

Jéssica Callou
Enviado por Jéssica Callou em 16/12/2005
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