De ficção e vida real

Ontem eu caminhava na Trilha e conversava, distraída, com meu companheiro. Teve uma hora em que ficamos absortos em nossos pensamentos e paramos de falar. Ultrapassávamos duas jovens mulheres e pudemos ouvir o que falavam; seguimos no mesmo ritmo, mas falavam alto e, mesmo distantes delas, a conversa nos chegava aos ouvidos. " Faz oito anos que a mãe dela morreu." "Já, tudo isso?" "É. E no velório da mãe dela, a tia falou pra ela que sabia que ia jogar o rim no lixo!... Ela ficou arrasada." Foi esse o segmento que interceptei da conversa entre as mulheres. Meu companheiro ouviu bem menos; o restante, que só eu ouvi, eu lhe contei e depois fiquei absorta de novo em meus pensamentos.

Eu sabia que iria escrever esta crônica e fazia ali mesmo o "rascunho". Na minha história, a órfã, a tia e a morta virariam personagens, e eu queria dar outro desfecho àquela narrativa por demais cruel para mim e para todos os envolvidos, porque eu e meu marido já viráramos cúmplices ou, no mínimo, ouvintes, e depois, seríamos co-criador e leitor ou coisas que os valham. Na minha história, eu coloquei um pouco de fé na mulher doadora do rim e ela ofereceu com muita esperança o seu pedaço de carne viva à irmã transplantada. Também, na minha história, a receptora morreu mesmo assim, porque nem toda a fé salva todas as vidas: Deus é que é o Senhor da vida e da morte!

A mulher morreu, mas no velório, a irmã doadora abraçou a sobrinha e fez silêncio. Depois foi à capela e orou ao Deus-Crucificado dizendo que fez o que pôde, mas que não deu. Que Ele aceitasse ali o seu fracasso e fizesse com o rim o que quisesse, porque Ele, com certeza, não desperdiçaria de jeito nenhum aquele rim, pois o usaria para fazer reparos em alguns corações, a começar, no dela.

Se pudéssemos, acredito que muitos de nós modificaríamos enredos, personagens, gestos, falas, pensamentos próprios e alheios.

Se pudéssemos passar a limpo nossas vidas, faríamos rascunhos para evitar borrões e mal-entendidos. Aí, quando, na ficção, todos estivessem seguros dos seus atos, certos de que esse seria o melhor jeito, aí sim, faríamos as personagens voltar à vida real.

A vida, com certeza perderia toda a graça, não haveria vilões, só mocinhos, todos já saberiam de cor suas falas, tudo seria premeditado.

Melhor mesmo é deixar a vida como ela é,assim, ao vivo, e tentar acertar na hora as falas e gestos, não viver com empáfia, ser bom, porque ser bandido de propósito na vida real tem o seu preço. Eu tento é não pegar o papel de bandido. Prefiro, se posso, repetir o papel de mocinha até cansar, mas não me canso; sou sempre aprendiz na arte de fazer o bem e de ser do bem.

Vejo que os atores, quando se trata de ficção, querem fazer uns papéis diferentes para crescer na arte de representar, mas eu não ligo de não ser boa atriz; quero ficar por aqui mesmo, porque esta escola tem sempre uma aula nova, um professor severo, um protagonista improvisador, um encaixe de cena, um ato inesperado, um desfecho improvável, e isso tudo para mim já é muito.

Neusa Storti Guerra Jacintho
Enviado por Neusa Storti Guerra Jacintho em 27/02/2008
Reeditado em 28/11/2009
Código do texto: T878276
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