Cronológica

A velhinha, minha anfitriã por ocasião durante aquela viagem curta, andava pela casa de um lado a outro, movida invariavelmente pelo apego aos pormenores de utensílios e móveis para meu conforto, já que o essencial da estadia já era impecável.

Aparentemente restrito tudo o que se chama “vida” da delicada senhora a seus pequenos afazeres, tanta dedicação ao meu bem-estar – e ela nem sabe que é dedicação vã - já atingira àquela altura, para mim, o limiar de um constrangimento insuportável.

Fixo os olhos no retrato pesado, preto, branco, mofado e absoluto na parede, enquanto a velhinha quase se agita pela casa, obsessiva por detalhes de hospitalidade ou coisa que o valha, visivelmente presa aos seus anos como o retrato de olhos opacos preso à alvenaria.

Dobra lençóis, organiza almofadas; planeja as refeições da semana que vem, uma vez que as desta semana já estão pra lá de esquematizadas e comprados todos os temperos.

Mas a cena que me embrulha o estômago -e me provoca a náusea insuportável que a realidade provoca- é quando a mulher está na cozinha e eu, escutando o tilintar da louça, vou até aquele cômodo sem um motivo aparente, como esses ímpetos que se tem e apenas se obedece como se se fosse, ainda, irracional e instintivo. Então, me deparo com o assalto: ela mede com primorosa cautela a quantidade de pó para o café que prepara. Mas ela faz café diariamente há milênios!Às vezes até mais de uma vez por dia. Isto me dissera, há pouco, em uma de suas frustradas tentativas de travar comigo um diálogo.

E a senhora construía ali, bem na minha frente, o frescor de uma primeira experiência sobre a própria construção de um hábito de anos. Como se dois corpos pudessem ocupar o mesmo espaço a um tempo: a agonia domada da rotina e o viço da novidade. Como se o automatismo do costume fosse superável por gestos baratos, como se ela pudesse ser mais do que era... Ah, que aquilo me doeu e me irritou! Ela não tinha que medir daquela maneira o pó, cobiçando o meu agrado.

A velhinha se esforça com a língua um pouco entre os dentes, parecendo capaz de remover um ou dois grãos, caso os julgue excedidos. A cena me lembra um cientista com seus tubos de ensaio, seus balões, seus materiais corrosivos, sua esperança de comprovar sua hipótese tão esclarecedora e, quiçá, alterar os rumos da história humana doravante. Penso em Einstein, penso em Kepler e penso no mundo, na realidade que estabelecemos como nossa e que, apesar de levar todas as nossas liberdades, carrega muito mais as restrições que não sei se podemos chamar de nossas.

E a velha não vai alterar nem meia vírgula de mundo: ele continuará girando para o mesmo lado depois daquele café. Talvez só minha cabeça gire para um lado surpreendente, talvez ela até saia de órbita... A velha não vai mudar nada a não ser o pobre, volúvel e entregue de meu rumo.

Caio de minha velocidade, prestes a explodir ou vomitar. Eu fico com medo da próxima gentileza. Mais uma delicadeza e eu não suportarei: explodo de minhas opiniões rígidas e empacotadas para a medida exata do diâmetro de meu crânio, entrego meu ateísmo e minha fé, abdico de minhas controversas psicologias, dos indigestos questionamentos de quem está sempre com a mania de vir a ser.

E se eu explodir? Aí então eu me espalharei por toda a casa pequena, cheia de rendas e bordados. Mancharei de vermelho este quadro mofado e os sofás terão pedaços de minhas pernas inutilmente cansadas. Meus olhos espero que não se preguem na janela.

E aquela velha infame que é uma coisa assistirá a todos esses meus filmes tragicômicos em película? E ela, terá estômago para mim e meus pedaços? Para tanta cronologia destoante, para apenas uma perspectiva - que é o que eu sou? Veria tão somente um ponto de vista, fruto de uma sucessão de fatos divergente da sucessão de fatos que materializa uma velha meticulosa... Eu, que estou é dentro de mim, nem existo para essa velha e já quase não me creio por culpa dela.

Ela está presa a seus anos, acorrentada a uma história menos gloriosa do que seria a sua. O que teria sido dela caso...? Estamos - e agora é que me revira o estômago com violência – estamos eu e a velha escravas do tempo; incrustadas em nossa sucessão de dias, como móveis roídos arranjados em salas de jantar, como estampas suicidas de vestidos da semana passada; como retratos sem cores de tanta falta de frivolidade e tragédia.

Eu, de olhos multicoloridos e pés inquietos, encaro o retrato preto e branco fixado com prego e martelo. Questiono até onde não posso fugir de me recortar nos pontilhados de meu tempo, já que eu quereria a ponte entre meus eternos pretéritos e do vindouro que tem o diâmetro do Universo. A ponte que seria minha libertação do tempo e me libertaria de morrer e voltar para a terra, que parece pó de café.