Reaprendendo

Nascemos para descobrir. Ler, interpretar, descobrir. Alcançar. Nascemos para refazer, reavaliar, recomeçar, recuperar, redimir.

(NUVEM NEGRA!)

No entanto, como numa noite súbita e sem aviso, fomos perdendo nossa curiosidade inventiva, nosso afã pela descoberta, e fomos, pouco a pouco, sem que sequer tenhamos percebido – fomos nos tornando indiferentes...

Indiferentes ao mundo, indiferentes à dor alheia, indiferentes à evolução das ciências, indiferentes aos sinais profundos que a História na qual vivemos faz questão de deixar claros. Fomos perdendo a capacidade ancestral de interpretar os fatos – para deles tomar atitudes e formar julgamentos – simplesmente porque nos tornamos indiferentes. Simplesmente porque apagamos com delicada agressividade a nossa íntegra aptidão natural para desvelar o novo entre refolhos de seixos e cascalhos. Esmorecemos nossa habilidade inata de revelar uma semente pronta para germinar em meio às avessas pedras de um deserto cuja latência é a fertilidade.

Onde ficou nossa crença no impossível? Foi essa crença que tornou possível que um objeto mais pesado que o ar voasse. Isso seria impossível. Mas foi – e é! – possível. Como explicar? Melhor do que explicar, podemos lembrar: um cientista (cercado de vários cientistas) simplesmente apostou na sua curiosidade inventiva; e desprezaram a indiferença alheia, de que hão de ter sido vítimas, para permitir que houvesse um milagre, impulsionado pela característica humana mais atávica, aquela que desde criancinhas de colo já trazemos com força incomparável em relação às outras espécies que são nossas irmãs aqui na terra – nosso interesse pelo novo, pelo mundo ao nosso redor, nosso interesse em transformar o mundo ao nosso redor em um mundo novo.

Um dia (ou terá sido uma noite?), da escuridão impossível, brotaram as asas do avião, galgando o sol. E brotaram vacinas da mais simplória substância caseira à nossa disposição – o bolor do pão. E obras literárias eternas foram escritas por homens eruditos e por outros com pouquíssima escolaridade – Don Quixote, Os miseráveis, Crime e Castigo, Dom Casmurro, Guerra e Paz. Nas palavras de Fernando Pessoa, vimos, sim, uma flor brotar do impossível chão. Vimos muitas flores brotar de muitos impossíveis chãos. Rumo aos céus. Rumo à lua. Rumo a Júpiter. Rumo ao infinito. Rumo aos cérebros. Descobrimos que a humanidade voa. E que voar é apenas o primeiro passo para o fazer...

Mas onde ficou nossa vontade de fazer? De desfazer, quando necessário? De refazer? De nos reeducar e de reeducar nossos olhos para as sutis e poderosas delicadezas de amor e fraternidade entre os escombros diários das notícias catastróficas? Por que, em algum momento, permitimos que a indiferença vencesse a nossa crença na possibilidade do impossível? Quando exatamente teremos perdido aquela nossa utopia que é capaz de curar, nascer, levantar, unir, conjugar, compreender, aceitar, abraçar, libertar, florescer?

Quando foi? Ser indiferente – ou anestesiado? – às situações de risco social e psicológico a que bilhões de seres humanos estão submetidos hoje, seja sob a alegação que for, é a mais antinatural atitude humana jamais empreendida pela nossa espécie. Antes de tudo – estamos sendo contrários à nossa mais intrínseca natureza. Quando perdemos o interesse na ação, na transformação do velho em novo, do bolor em vacina que cura, de pilhas de madeira e ferro pesado em um harmônico transporte voador – já não somos mais humanos. Nem sei ao certo o que somos.

Mas a guerra moral a que somos submetidos a cada minuto, em que um macabro desfile de atrocidades se atropela numa escabrosa passarela dos horrores, essa guerra, longe de nos sensibilizar aos problemas reais da humanidade, simplesmente nos fez criar um mecanismo de defesa – que é a triste indiferença.

Quando nos tornamos indiferentes, tornamo-nos inúteis. Tornamo-nos escravos de nós mesmos. Anestesiados pela estúpida seqüência ininterrupta de tragédias, amarramos voluntariamente nossas mãos e nossos pés no calabouço de um navio, e estamos esperando inercialmente o seu naufrágio iminente... iminente... iminente...

Mas esse naufrágio nunca ocorre. De repente nos damos conta de que o tempo lá fora é sereno, e a brisa é delicada. E damo-nos conta de que não há qualquer resquício de tempestade, e que as ondas vagueiam numa harmonia que simplesmente mantém a graça das vidas. Observamos que “no coito das araras, tudo está como sempre foi”. Vemos, já com menos indiferença, que o tão “esperado naufrágio” não tem nenhum motivo para acontecer. Que, em grande parte, é um medo inventado pelos meios de comunicação, e que, se olharmos o céu, o sol, o vento e o mar, teremos a certeza de que NÃO há um naufrágio iminente.

Porque, antes de tudo, quem age no mundo somos nós. Cada um de nós. Independentemente dos medos artificiais e grosseiros que nos querem implantar para que, cada vez mais, fiquemos indiferentes. Quando nos lembramos de que o mundo é feito e será sempre feito por nós, recuperaremos a nossa vontade tão natural de REPLANTAR, REAPROVEITAR...

...RE-MAR no oceano sereno em que sempre acreditamos e que está diante dos nossos olhos e mãos REAIS. Essa é nossa vocação. Esse é nosso mais profundo selo. Esse é o nosso destino. RE-APRENDER.

Estamos na mesma terra. Dispomos do mesmo mar para navegarmos. Nossa vida não é uma atônita inércia, um rol de escatologias, uma selva de promiscuidades e indiferenças irreversíveis, uma floresta de seres robóticos indiferentes e anestesiados pelas explosões de barbaridades apodrecendo os papéis de jornais diante das nossas retinas já insensíveis e frias. Não somos isso.

Nossas vidas são as nossas grandes e pequenas ações. Viver é transformar. E para isso, é preciso voltar a ver a luz universal do mundo, para recuperarmos o discernimento... que estão tentando “afundar” numa tempestade que nem sequer existe... É preciso reaprender o eterno e apaixonado desejo humano de transformação.