A RACHA DA DONA JARDA

Corria o ano de 1981, março, e depois de muito insistir que o cansaço e a dor no peito não eram nada, meu pai, enfartado, acabou internado no Lazzarotto, um dos raros hospitais de Porto Alegre que faziam cirurgias de ponte de safena, quadro dramático, três. Ainda bem que podíamos pagar os procedimentos. Naqueles tempos, como hoje, dinheiro não compra a vida, mas pode ser determinante para prolongar.

O deputado era amigo de meu pai desde os tempos de padeiro, dono de padaria e vereador em Bagé. Quem conheceu lembra bem e quem não conheceu perdeu a bela oportunidade que teria sido conhecer o bageense mais bonachão que tomou assento na Assembléia Legislativa da Província de São Pedro*. Aliás, tomou assento e gostou tanto que concorreu a reeleição e acabou acampando no parlamento por não breves oito anos. Simpático como poucos.

Em plena ditadura militar, um político de oposição fazia pouquíssima diferença, como hoje em nível federal, e coisa que não fazia falta era uma certa educação formal (continua não fazendo), que servia para o sujeito fazer discurso inflamado e bonito. Em compensação, era um vapt-vupt e o AI-5 caía em cima dele.

Visitar doente é coisa que faz por muita consideração. Foi o acaso e a boa vontade de seres humanos bondosos e prestativos que fez com que naquela tarde, véspera do dia da cirurgia, num quarto de hospital, estivessem o deputado, de traje e pouco elegante, Dona Jarda, faceira e extravagante, a caráter, com amplo decote, justamente para mostrar o que interessava, e o doente, pronto para ser tratado como frango no dia seguinte, com certo tédio daqueles momentos de distração que amenizavam a agonia.

Um bom papo caia bem e para isto o deputado era a pessoa ideal.

Ocorre que a senhora presente havia feito a mesma cirurgia e num momento, entre tantas lembranças narradas, disse, como quem quer dar grande apoio moral:

- Hoje estou bem, mas já fiz a cirurgia que ele amanhã fará.

O deputado olhou novamente para o peito carnudo, para não dizer gordo, da Dona Jarda, marcado pela cirurgia no centro do tórax, que parecia formar duas bordas e lascou:

- É, eu já tinha percebido a sua racha**.

* Província de São Pedro, forma como os gaúchos também tratam o Estado do Rio Grande do Sul

** Há quem diga que não foi bem assim, o Dep. Sedenir Martins(MDB) teria apenas comentado, no elevador, ausente a citada, que a cicatriz parecia uma racha. Escrevi lembrando de bons amigos da família.