CENAS DO RIO... ANTIGO?

CENAS DO RIO ANTIGO

Nelson Marzullo Tangerini

O título desta crônica deveria ser “Dois sonetos e duas mulheres – nada sérias”. Pensei bem. Mudei de idéia. As feministas acabariam por me crucificar. Os tempos mudaram. A mulheres conquistaram seu espaço, tornaram-se independentes, donas de seus narizes, de suas vidas. E eu não tenho nada contra esta luta. Não sou machista. Quis mostrar apenas a mentalidade de uma época, em que a mulher tinha de ser “recatada”, e focalizar dois retratos de “cenas” urbanas: duas situações, duas “paqueras”, dois diálogos – em plena rua -, trazidos para dentro de um soneto.

Hábil humorista e sonetista, Nestor Tangerini surge no início da década de 1920, como poeta, através de “uma pequena ajuda” de seu amigo Humberto de Campos, o Conselheiro XX, que publica seu soneto Cenas do Rio, na revista literária A Maçã, no dia 18 de março de 1922 - um mês após ser deflagrada a Semana de Arte Moderna de 22.

O soneto, modernista em seu conteúdo, por causa do humor, da sátira, apresenta formato parnasiano e malícia realista – mais precisamente machadiana: a mulher perde sua aura de ingenuidade, afastando-se, assim, da mulher idealizada pelos românticos.

Leiamos o soneto:

“Certa dama estava em paz,

no ponto, esperando o bonde,

quando se chega um rapaz,

a quem, zangada, responde:

Deixe-se, moço, de graça!

Insiste o moço: - Onde mora?...

- Meus Deus! Que horror! Que desgraça!

Se vem meu marido agora!...

E a dama, que o caso teme,

diz-lhe, logo, ansiosamente:

- “Me” deixe... Moro no Leme...

Me deixe!... Sou dona Ivete...

Moro à rua São Vicente...

“Me” deixe... No trinta e sete..”.

A moça é casada. Mas o rapaz é interessante. Ela olhou para os lados. O marido não estava “na área”. E ela foi logo dizendo-lhe onde morava.

Nunca citada pelos românticos, a traição só foi mesmo abordada pelos realistas – em língua portuguesa, por Machado de Assis e Eça de Queirós.

Em Mulher Séria, outro soneto de formato parnasiano, publicado no jornal A Capital, Niterói, RJ, 5/1/1926, Nestor Tangerini apresenta-nos uma “viúva, porém honesta” deliciosa, ainda triste, digna de um conto de Nelson Rodrigues, louca para cair no laço do cafajeste Adaltinho. E por que não? Seu nome é Hespéria. Ela é mesmo séria. Irrita-se com ele, por julga-la caloteira, e confirma que o esperará no local marcado. Onde? O poeta não ouviu bem, por causa das buzinas e do burburinho da rua.

Vejamos:

“Encontram-se na Avenida,

ele chique e ela um pedaço,

o Adaltinho bela vida

e a viuvinha do Melgaço.

Olhos meigos, rasos dágua ,

Voz terníssima, singela,

A chorar mágoa por mágoa,

Ele vai pra cima dela.

Marca um ponto (não sei onde).

E ele insiste. E dona Hespéria,

Ofendendo-se, responde:

Que pensa, senhor Adalto?

Eu sou mulher muito séria!

Quando prometo, não falto!...”

Mostrei-lhes dois retratos e uma época: 1920. Mostra-nos o poeta, meio parnasiano, meio realista, meio modernista, que a mulher foi, aos poucos, conquistando o seu espaço e o seu direito de ser sexualmente feliz. Escolher um parceiro para um relacionamento momentâneo, para “ficar”, era uma coisa impensável. Ela era vista como “perdida”. Pensemos se algo realmente mudou no quartel de Abrantes.

As meninas de hoje lindamente “ficam”, mas ainda são chamadas de “cachorras” e de “potrancas”.

Os homens mudaram? Não mudaram. Eles têm medo da mulher. Têm mais medo agora, que ela conquistou seu espaço e está dando um show de bola nos homens.

Nelson Marzullo Tangerini, 52 anos, é escritor, jornalista, compositor, poeta, fotógrafo e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube dos Escritores Piracicaba [ clube.escritores@uol.com.br ], onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini.

n.tangerini@uol.com.br, tangerini@oi.com.br

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 03/03/2008
Código do texto: T884692