Lembranças do pescador.

Dias atrás estive em Piracicaba a trabalho, e após uma reunião fomos almoçar na famosa Rua do Porto, em um restaurante especializado em peixes, bem na beira do lindo rio Piracicaba, eternizado no cancioneiro caipira.

Um ambiente muito agradável, comida muito boa, tudo isso, sob a sombra de uma grande arvore centenária.

Terminado o almoço, após despedidas, voltei para São Paulo, sozinho, naquele final de tarde.

Na estrada duplicada com movimento reduzido, vim me perdendo em lembranças de minha adolescência no interior das Minas Gerais.

Naquela época, eu vivia a beira rio praticamente todos os dias, era escola pela manhã e pescaria ou banho de rio de tarde.

Na nossa cidade passa o Rio Vargem Grande, de grande só o nome, pois hoje é mostrado em mapas como “Ribeirão”( a despeito da palavra conter mais letras e ainda terminar com ão).

Mas naquele tempo, ele tinha muito mais água, suas margens eram muito mais preservadas, uma mata ciliar exuberante, sem cercas, e principalmente tinha muito peixe.

Era tanto peixe, que em alguns dias tínhamos que espanta-los um pouco para poder colocar o anzol dentro d’água.

Diziam os mais velhos que foi de uma enchente no Vargem Grande que nasceu o tal Oceano Atlântico....

Era um rio de muitas curvas, muitos pontos de pesca, mas logo abaixo da ponte de ferro, havia uma curva diferente das demais, bem grande, dizem que fruto de uma briga do lendário Pedro Torres com uma piaba imensa.

Minhas lembranças foram se povoando de gente que não mais existe, de antigos companheiros de todas as idades, porque pescador não tem idade...são os personagens que apresentarei a seguir.

Falando em Pedro Torres, era um tipo, troncudo, com metro e sessenta, falava alto com muito sotaque local, tinha umas terras que estavam arrendadas, o que permitia que ele não mais precisasse trabalhar e pudesse pescar diariamente, e sempre no mesmo lugar, na curva que levava o seu nome.

Ali ele chegava logo pela manhã, que peixe acorda cedo, e colocava as suas onze varas, todas de legitimo bambu cana da índia, preparadas com sebo de boi sob calor de fogueira, puro requinte.

Naquele tempo não existiam essas lojas de caça e pesca com suas modernidades, de fibra de vidro, plástico, porta peixes, molinetes, etc.

O nosso material de pesca era totalmente artesanal, excetuando-se a linha de nylon e os anzóis.

Nossas varas eram de bambus, e os samburás de taquara.

Mas, voltando ao Pedro Torres...o resto de suas coisas ficavam em uma cesta de taquara, sempre coberta com uma limpa toalha, e ali repousavam uma garrafa térmica com café, outra com água potável, além de um caldeirãozinho de alumínio com a marmita preparada na madrugada.

Pedro Torres, não era considerado mentiroso, era exagerado...muito exagerado.

Uma vez por ano, ele e seus amigos, os irmãos Pedro, Isac e Juquinha, mais alguns, iam ao Mato Grosso por uns 10 dias para pescar.

Enquanto ele ali esperava os peixes que vinham devagar, contava um causo atrás do outro, das pescarias daquele Mato Grosso que era o sonho de qualquer um; onde só tinha peixe de tamanho tal, que com os dois braços abertos ainda faltava metro para medi-los.

Somente a mim, ele contou uma centena de vezes de uma luta que tivera com um índio Xavante, que caso perdesse não poderia mais sair da aldeia, mas o coitado do índio havia provado a sua descomunal força, apanhando por meia hora sem repetir um tombo.

Complementava, que se quisesse, poderia ser tornar o cacique da aldeia, de tanto que gostaram dele.

Naquela idade eu aceitava a historia meio desconfiado, depois fiquei sabendo que nunca houve essa luta, e que o único contato que tiveram com os índios, foi de passarem pela aldeia a caminho do rio, onde tiveram que pagar um pedágio com alguns litros de cachaça.

Apesar da diferença de idade, eu ali com meus 12, ou 13 anos, ele na casa dos sessenta e tantos, o papo corria solto e animado, sempre.

Dito Preto, sujeito manhoso, mais preto que seu apelido sugere, sempre trajando somente um calção de pano, sem camisas e descalço, alto magro, tipo esguio, que caminhava nas águas dos rios tal qual uma sombra, sem fazer barulho ou marola, exímio “caçador” de TRAIRAS (Hoplias sp - peixe da família dos caracídeos ) de carne de ótima qualidade; sempre armado de uma “fisga” ( tridente de metal afiado, preso a um cabo de madeira) sempre pronto a capturar o tal peixe entre as capituvas ( tipo de capim de grande porte que cresce nas margens e dentro dos rios).

Todos os dias, voltava para a cidade com uma “fieira” (arame de um meio metro, com uma pequena madeira de calço em uma extremidade, onde se prendem os peixes, fazendo-os ficarem sobrepostos, de modo a que fiquem todos a mostra para venda.) de uns três quilos para venda.

Talvez por culpa do destino, de tanto matar traíras, foi morto por um vizinho, quando prestava serviços sexuais a sua mulher, a sombra de um pé de café.

Como seus peixes, foi morto com uma facada nas costas, ainda com sua “fisga” dentro da mulher do vizinho chifrudo.

Zé Martiniano, vivia no rio, do rio e para o rio.

Morava em uma casinha, na barranca do rio, junto a ponte de ferro, ali tecia os melhores balainhos ( pequeno cesto de taquara para acondicionar os peixes capturados), que todo pescador que se prezava, tinha pendurado nos ombros, preferencialmente cheios de peixes.

Vivia da pesca, de “covos” (armadilha de bambu com uma pequena entrada onde os peixes entravam e não conseguiam sair), homem de estatura pequena, olhos muito azuis, magro, alguns dentes amarelos na boca, sempre ocupada por um grande cigarro de palha e um chapéu de feltro todo rasgado de velho.

Subia e descia a remo o riozinho verificando as armadilhas, coletando os peixes e os limpando, já dentro da velha canoa de madeira.

Quando via um desses pescadores de barranco, encostava a canoa em uma sombra para um dedo de prosa.

Dizia que era tão dado a pesca, que até ensinou seu gato a pescar.

O bichano, segundo seu dono, ficava na beira d’água, colocava as unhas de fora, raspava o chão enroscando uma larva ou minhoca, depois mergulhava a patinha no rio, e logo que aparecia um peixe curioso, o tal felino não errava a fisgada...

Seu Zé Martiniano ficava uma fera quando alguém duvidava, recorria a dezenas de nomes que poderiam testemunhar esses feitos, infelizmente todos já mortos.

Dedão, na pia batismal, José Hilton...nunca foi dado a estudos, mas naquele tempo se especializou em matar passarinhos com estilingue e a pescar lambaris....seu pai era meu padrinho de batismo, uma honra para os dois( modéstia é meu forte).

Dedão era um companheirão, sempre pesquisando novos pontos de pesca, e ainda fazia o serviço de limpar a área, pois se orgulhava das habilidades de manejo do facão que ganhou de um tio que vivia no Rio de Janeiro.

Dona Cecília sua avô, dizia que uma velha tartaruga da casa, era mais esperta que ele para serviços domésticos, ela não sabia de suas habilidades no manejo do facão e da vara de pescar.

Certa vez, estávamos pescando e o Dedão derrubou as minhocas que trouxera, ofereci das minhas, e ele senhor de si, retrucou que nem precisaria isca, pegou um pedaço de papel da carteira de cigarros, e escreveu....isca.

Colocou aquele pedaço de papel no anzol e o lançou n’água.

Passado alguns minutos, a vara começou a se curvar, e com o movimento da correnteza, foi difícil ele trazer o que estava preso no anzol...para nossa surpresa, era um saco de papel de cimento vazio, onde se podia ler...peixe.

Pedroca, era protético e pratico ( o dentista da época), mas o que gostava mesmo era de pescaria, e dos causos que ela rende.

Contam que certa vez, pescando ao seu lado, um camarada pegou uma traíra, que tinha um dente de ouro, ao que o Pedroca mandou soltar dizendo que ela estava em tratamento, talvez se a pegasse daqui uns meses, já estaria com a boca toda dourada, e valeria uma fortuna.

Logo depois o camarada pegou outra, mostrou ao Pedroca que essa não tinha nenhum dente de ouro.

Mas o Pedroca mandou soltar também.

-Porque, se essa não esta em tratamento...

-Meu caro, essa é o dentista do rio.

Mais personagens virão...aguardem.

Lune Verg
Enviado por Lune Verg em 04/03/2008
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