O IMPERADOR DA LÍNGUA PORTUGUESA

Estamos comemorando os quatrocentos anos de nascimento do Padre Antônio Vieira, que Fernando Pessoa chamou de “imperador da língua portuguesa”. Em Portugal, 2008 será o Ano Vieirino, uma homenagem acertadíssima. E no Brasil? Vieira veio com seis anos de idade para o Brasil, aqui estudou, tornou-se padre e pregador extraordinário, aqui realizou a maior parte de sua obra, e aqui em nossa terra quis morrer. Amava o Brasil como brasileiro. Não vamos prestar-lhe nenhuma homenagem? Não é bem assim. Já está programada a publicação de três biografias, de sua correspondência e de duzentos e seis sermões. O Ano Vieirino também será celebrado no Brasil, além de na Itália, na Espanha, França e Bélgica.

É ler uma página de Vieira e ficar envolvido num clima de encantamento em que tudo é linguagem. É o gosto de palavrar, de se deixar levar pelas palavras e de levá-las às últimas conseqüências. É a sonoridade por um lado – Vieira teria prazer em se ouvir! – e, por outro, o encadeamento de idéias e imagens, umas puxando outras, e mais outras e outras. Pode nos parecer insignificante, não seriam necessárias tais diatribes ínfimas, para nós são só palavras, uma enxurrada de palavras. Mas Vieira viveu num tempo em que as palavras eram importantes, eram essenciais. O raciocínio sutilíssimo, uma idéia, qualquer idéia desenvolvida ao máximo, para provar justamente isso, que se podia desenvolvê-la, que idéias não quebram, não são de cristal vagabundo, mas elásticas, plásticas, plasmáveis. As idéias não eram etéreas, como julgaríamos nós, de longe, mas concretas, tinham peso e medida – e para se ver, sentir, pesar, eram desdobradas ao infinito, em todas as suas possibilidades.

Camões criou a língua portuguesa como a conhecemos, a língua que falamos e escrevemos; sim, não só a que escrevemos, mas talvez principalmente a que falamos, está toda ela codificada nos Lusíadas; em sua essência a nossa língua é a que Camões estabeleceu no século XVI; Vieira veio logo depois, e incumbiu-se de experimentar essa língua que recebeu das mãos do primeiro mestre; Vieira será o segundo mestre. Não criou a língua, desenvolveu-a, pacientemente, milimetricamente, costurou-a, bordando, enfeitando, sempre com pregas firmes, sem defeitos, e que, consistentes, resistissem aos embates do tempo. Vieira escrevia como se tivesse todo o tempo do mundo. Ficou famosa uma tirada sua, quando se desculpou numa carta de não ser breve por faltar-lhe tempo. Nós que pensamos que precisamos tempo para espichar o nosso discurso! O dono da língua sabe que o trabalho é condensá-lo. Mas foi uma tirada, apenas, que Vieira sabia o valor do tempo. Ah, felizes aqueles tempos em que se tinha tempo. Nós é que vivemos no tempo da pressa. Nós somos tão apressados que a nossa vida se torna artificial, e somos, nós mesmos, mecânicos, automáticos, vazios.

Gosto, como o vulgo, porque eu também sou vulgo, de lembrar as passagens anedóticas e pitorescas de Vieira, como essa de faltar-lhe tempo para ser breve. Ou aquela do famoso “estalo de Vieira”. Teria mesmo Vieira sido um aluno medíocre e de repente, nem estalo!, abriu-se-lhe a mente? É verdade que sentiu, num átimo, uma dor na cabeça e um repuxar interior, um – como diríamos? – um estalo! que lhe abriu as portas da inteligência. Há quem diga que rezou fervorosamente a Nossa Senhora, que lhe concedeu a graça da genialidade. Há quem diga que Vieira foi um aluno comum, não afirmando que tivesse já manifestações de gênio, mas também não que tivesse dificuldades de aprendizagem. Há até quem diga que tomou uma pedrada na cabeça, que lhe despertou a inteligência, a partir de então privilegiada. Isso tudo não tem importância nenhuma, é só o anedótico. Mas eu falei que gosto do anedótico. No espírito da anedota, eu costumava lembrar de que Vieira começou a sua carreira aqui no Brasil, pregava a broncos, que não entendiam bulhufas; teve uma feita, com a invasão holandesa, que fugir para o mato, onde pregou aos índios na língua deles, que ele conhecia, como conhecia a língua de Angola; pois em 1640, com a Restauração da Coroa Portuguesa, que ficara por sessenta anos com a Espanha, partem delegações das colônias portuguesas para prestar homenagem ao novo rei português, e assim Vieira chega à Corte e lá, onde havia mentes capazes de reconhecer um gênio, foi reconhecido gênio. Cresceu de tal forma a fama da sua genialidade, em vida ainda, que se conta que, ao morrer, e em 1720, ao ser exumado o seu cadáver, o seu crânio estava semeado de partículas de metal, que reluziam ao sol. João e Tiago foram chamados por Jesus de Boanerges, Filhos do Trovão, porque queriam chamar raios dos Céus contra os ingratos com a palavra de Deus; Vieira, por sua vez, foi o trovão que abalou o mundo luso-brasileiro do século XVII. No “Sermão da Sexagésima”, que trata justamente da arte de pregar, ele mesmo diz do pregador: “... com tal valentia no dizer que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio, e cada razão um triunfo. (...) Assim há de ser a voz do pregador: - um trovão do céu, que assombre e faça tremer o mundo". O ribombar desse trovão ouve-se até hoje.