Os Invisíveis

A rua é seu mundo. Porte atlético, à maneira militar, quase destruído pela vida perambulando por aqui e por ali, sem mais o que fazer. Sentado no chão, ontem o vi ingerir algo pastoso dentro de uma metade de garrafa Pet. Subitamente, ergueu o braço esquerdo e observou, contra a luz, o que restava de uma cerveja. Doce conteúdo é o que sua fisionomia parecia transmitir, ao contemplar o líquido que, a esta altura não parecia mais gelado, mas ainda assim, valioso.

Deve ter sido obtido com as esmolas que sua companheira pede em uma importante avenida de meu bairro. Porque ele, nunca o vi pedindo qualquer coisa. Às vezes mexe com alguma garota, como outra ocasião em que o surpreendi a pegar o calcanhar de uma transeunte, mas ela riu, o que o fez soltar o seu troféu.

Às vezes, ambos dormem a sesta, cobertos com cobertores, em plena calícula, pés de fora e alguns trapos por travesseiro. Em outras brigam, gritando frases inintelegíveis, mas ninguém se importa.

Ela é gorda, e ao estender a mão sorrindo, mostra a arcada superior, desfalcada de muitos dentes. Seus traços revelam uma perdida beleza, quando a observo levantar de seu posto, encostada num muro que acompanha a calçada, sem se importar com a urina que escorre para o meio-fio. Outra situação freqüente em que ninguém vê nada. Já pensei em denunciar a sujeira, mas parece-me que aquela calçada é deles, que se os levarem para algum abrigo, vão fazer falta...

De onde saíram? Pq a vida degradante, para eles e para nós?

Ela, às vezes me sorri, a mostrar a gengiva nua e pede numa voz roufenha que começa alta, mas que vai morrendo antes de concluir o que ia dizer:

-Ai tia...

Mão estendida, olha para os transeuntes, que não retribuem o pedido. Recusa geral, mas alguém deve encher a garrafa Pet, penso eu. Às vezes penso em parar e conversar com eles, ela principalmente, ou alcançar-lhe uma moeda, mas depois penso: Será a coisa certa? Dar dinheiro para comprarem cerveja?

Hesito em demonstrar interesse e indagar o porque daquela situação. Não teriam eles algum parente que olhasse por eles? Parecem-me pessoas com problemas mentais e, embora esta seja apenas uma hipótese de alguém leigo, é algo a conjeturar, sobretudo ao vê-los juntos. Ele, quando bebe, faz muito barulho e, neste caso, já percebi que as pessoas, eu inclusive, passamos um pouco mais longe que o habitual.

Sim, melhor não aborda-los e continuar como expectadora de mais uma cena no espetáculo diário de nossa cidade.

Marluiza
Enviado por Marluiza em 08/03/2008
Código do texto: T892732