Um exemplo de vida

Um exemplo de vida

Jocenir Barbat Mutti

Março.2008

No final da primavera de 2007, por indicação de uma amiga, contratei um pintor - era chileno - para resolver diversos problemas de umidade e acabamentos na pintura da minha residência.

No primeiro contato apareceu o filho do pintor, um homem muito educado, na faixa dos quarenta anos. Em aproximadamente uma hora, mostrei para o empreiteiro todos os problemas que agendara para serem resolvidos. Notei atenção e interesse em meu interlocutor, mas senti uma ligeira insegurança nas suas posições técnicas.

No outro dia estava ele de volta, desta vez, muito bem acompanhado com seu pai, um homem com mais de setenta anos, pouco mais de um metro e cinqüenta centímetros de altura, devendo pesar cerca de quarenta quilos. A temperatura ambiente naquele dia devia beirar os vinte e oito graus, e mesmo assim o senhor vestia um sapato marrom, surrado mas de boa qualidade, uma calça de um tecido não adequado para o verão, uma camisa xadrez de manga comprida com o botão da enorme gola também abotoado, um blusão de caxemira e por cima disso tudo um casaco de lã.

Chamou-me a atenção o brilho de confiança em si nos vivazes e roliços olhos daquele homem. Na noite anterior, o filho deveria ter-lhe passado um relatório completo da minha lista de pendências. Quando o pintor começou a falar com seu sotaque castelhano, senti que ele já tinha planejado rigorosamente o que deveria fazer. Pediu permissão para analisar com mais detalhes a parte frontal da casa, que já havia escolhido para orçar, pois pretendia começar por ali. Após a vistoria, foram embora pai e filho, prometendo voltar num par de dias. Foi o que aconteceu. Apresentaram o orçamento que trouxeram por escrito, detalhado por ordem dos serviços a serem realizados, junto com a relação do material que deveria ser comprado. Explicaram em uma reunião formal, passo a passo, todos os procedimentos e os materiais necessários à obra. Me pareceu salgado o preço da mão de obra...

Reuni-me com minha mulher e decidimos investir, na tentativa de dar uma boa solução para um problema que há tempo vinha nos martelando.

O trabalho começou pelas duas portas da garagem, que apesar de periodicamente terem recebido demãos de verniz, estavam deterioradas. Trouxeram um ajudante, também de idade um pouco avançada, e ficaram uns três dias eliminando todas as rugosidades da madeira com o uso de diversas ferramentas.

De repente não vieram mais. A esposa do pintor chileno tinha morrido e eles estavam envolvidos com o funeral e o luto. Fiquei sabendo que também ele, como sua esposa, estava sofrendo e se tratando de um câncer terminal. Aquela magreza tinha uma causa.

Após o grave incidente, a obra continuou. Lá estava o meu pintor chileno coordenando a aplicação do selador e verniz incolor. Num determinado momento, fui examinar o andamento do trabalho e gostei muito do acabamento que as portas tinham recebido. O homem se adiantou e disse:

- Calma, senhor, ainda vamos lixar e pintar tudo por mais três vezes.

Cruzes! Pensei em voz alta. Notei que o prazo de conclusão da obra não era prioridade, o que valia era a perfeição do trabalho, não se tinha como discordar ...

No final da pintura as portas ficaram lindíssimas, muito mais bonitas do que quando foram construídas e montadas.

Fiquei fã daquele velhinho. Em conversas com ele, apreciei os seus conhecimentos sobre assuntos diversos. Do vinho chileno às várias obras executadas ao longo de sua vida. Senti que o homem era culto e muito simpático. Tinha bala na agulha. Era feliz, enfrentava as adversidades com dignidade, parecia de bem com a vida. E seu filho ali, como fiel escudeiro.

Após o término da obra, o meu querido pintor chileno morreu, aliás, não deve ter morrido, ele simplesmente foi embora. Seu dever neste mundo já tinha sido cumprido.

No curto período de minha convivência com esse pequeno grande homem, constatei que ele parecia viver os seus dias sem se preocupar com a morte. Um belo exemplo de vida. Um profissional competente, que se fez respeitar pelo saber e conduta.