Os Domingos de Páscoa da minha infancia eram sempre ensolarados.A claridade da manhã entrava pela minha janela e um raio de sol ,pousando nos vitrais,enchia de luzes meu pequeno quarto.O vizinho ao lado,coração magoado pela traição da amada,cantava,tristonho,com uma bela voz de barítono.Zefa chegava alvoroçada,toda arrumadinha, o vestido de chita cheirando a alfazema,dizendo:-Levanta,preguiça,vem tomar café,tua mãe ja tá na igreja.Eu ouvia os sinos tocando festivamente,celebrando a ressureição;no alto-falante da esquina,Francisco Alves cantava um sambinha.Acordada,lavada,vestida e penteada-e olha que era uma novela pentear meus cabelos,longos,lisos,iam até a cintura numa cascata de cachos dourados,que teimavam em embaraçar,o pente lutando contra o volume,Zefa lutando para desembaraçar e eu,sem ajudar em nada,a não ser em fazer má-criação,desejava crescer logo,me casar,para nunca mais precisar pentear os cabelos.Vencida a batalha,feitas as tranças, enfiava meu vestido branco de organdi,os sapatos de boneca e rumava para a missa.A igreja estava lotada;povo,autoridades,beatas,o altar-mór,lindo,todo enfeitado,os jarrões de prata atochados de angélicas e rosas brancas,um cheiro adocicado no ar.Distingui,na multidão,"Sêo" Arsenio,que não perdia missa,vinha de longe,a pé ou a cavalo,sua fé removendo obstáculos;muito religioso,chamava o padre de "meu padroeiro" e,não satisfeito de dar ouvidos ao sermão,dava olhos,também,teso,duro,sem virar a cabeça,mirando o altar;mais ao fundo,Naninha,moradora de rua,que usava sempre um colete bem curtinho,sempre limpo,sempre colorido,não tirava nunca,nem quando os moleques a perseguiam,correndo atrás dela e gritando:-Colete curto,colete curto;ela se virava,atirando as pedras que apanhava nas ruas e seguia em frente,viajando nas nuvens.Na igreja apinhada,Valda,que adorava mexer com toda gente,começou a provocar baixinho:-colete curto!Cantava-se o Bendito,Naninha mergulhada na canção,ouviu a provocação da outra e o odiado refrão;aproveitando o som da música,respondeu,acompanhando a reza:-colete curto é a sua mãe.Houve psius,um vizinho de banco reclamou,apontou o altar,mas,Naninha não se deu por achada;aproveitando ainda a melodia sagrada,respondeu:-eu faço assim prá não perder o tooom.A missa continuava;todo o aparato da igreja,os rituais que vêm ajudando a romper os séculos e os costumes modernos,a bénção do Santissimo,a Comunhão,a contrição dos fieis,D.Iazinha e o velho Aristeu,rezando baixinho,um ao lado do outro por quase cinquenta anos,o prefeito,o delegado,os médicos do lugar,alguns vereadores,um ôlho na missa,outro nos votos,o povo,um ar de santidade no ar,uma vontade de ser bom,de renascer das cinzas,como a fênix,inaugurar uma segunda-feira,novinhos em folha,sem pecados nem tristezas.O foguetorio,la fora,mostrou que a missa tinha terminado.Todos voltaram para casa,para a realidade,para cometer os mesmos pecados.
Miriam de Sales Oliveira
Enviado por Miriam de Sales Oliveira em 22/03/2008
Código do texto: T911947
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