A AGULHA

Terminando de se trocar enquanto o marido folheia o caderno dominical de Esportes, na cama. Coisa que ela, aliás, detesta, pois parte da tinta das letras que borra os dedos exigirá uma dose extra de sabão em pó no lençol na lavagem do dia seguinte, o que pode vir a deixar manchas no tecido, segundo o Manual da nova máquina de lavar que ela lera após o almoço. E segunda-feira, como ele já deveria estar careca de saber, era dia de lavagem das roupas de cama, segundo o cronograma que ela havia estabelecido para a empregada há dois anos atrás.

- Cuidado quando for se mexer, minha agulha de bordado deve estar em algum lugar por aí.

Poucas pessoas poderiam imaginar aviso mais insólito numa hora destas, ele apenas esperando a chegada definitiva de Morfeu, que aos domingos teima em aparecer mais tarde do que o normal e também mais melancólico, titubeante até. Ele, num misto de desconfiança e surpresa:

- Aí onde?

- Em cima da cama. Minha agulha de bordado deve estar em algum lugar em cima da cama.

Bem que ele estava achando estranha essa novidade de bordado e ponto-cruz, mas aí também já era demais.

- Você quer dizer que tem uma agulha de bordado, daquelas grandes, em algum lugar desta cama? Esta mesma cama em que estou deitado?

- Grande é a de crochê. Essa aí é pequenininha.

- Pequenininha, mas machuca. E em cima desta cama?

- E tem outra cama por aqui, meu bem? Só pode ser essa, mesmo.

- Mas como é que esse raio dessa agulha foi parar em cima da cama?

- Eu estava fazendo bordado, tive que sair pra ver o ponto da massa e quando voltei não achei mais a agulha. Deve estar por aí, em algum lugar.

O pior não era perder definitivamente as chances de ter sexo naquela noite –o que o deixava silenciosamente irritado por horas, ä espera da semana seguinte. O pior era passar uma noite de inteira com a possibilidade de tomar uma espetada a qualquer momento.

- Isso quer dizer que, entre outras coisas, posso vir a tomar uma agulhada na bunda a qualquer momento durante uma noite inteira?

Ela, já deitada:

- Se for na bunda, melhor, que bunda foi feita pra isso mesmo.

Depois de alguns minutos de ponderação, ele resolve, na sua condição de macho decidido e sabedor do que é melhor para sua espécie:

- Pois então vamos levantar e rearrumar a cama, a gente resolve logo essa história.

Como acordá-la seria crueldade (impressionante a rapidez com que aquela mulher pegava no sono ultimamente), ele depositou o jornal no chão e, cuidadosamente, virou-se para o lado, estando atento a eventuais picadas.

A noite foi um suplício. Pode-se dizer que de hora em hora ele acordava tentando sentir alguma coisa estranha na cama -sempre em vão. Exceção, claro, quando ela se mexia e encostava a coxa na sua, o que fazia com que ele despertasse ainda mais.

No outro dia, como de hábito, saiu mais cedo que ela e a primeira coisa que fez ao entrar no escritório foi ligar o computador e checar a caixa de mensagens a definir as prioridades do dia. Conferiu na internet os resultados da rodada do campeonato no final de semana (que era o que ele estava tentando fazer à noite, na cama, antes da noticia da agulha perdida), calculou mentalmente os pontos necessários que seu time precisava pra escapar do rebaixamento e iniciou mais um dia de trabalho burocrático e repetitivo. Antes de voltar pra casa, verificou novamente sua caixa postal e encontrou uma mensagem dela: “Querido, desculpe, nem vi você pegar no sono. Volte logo. Vamos por as crianças pra dormir cedo e assistir um filminho do Benigni no DVD”.

Ela só esqueceu de dizer que pela manhã a agulha fora encontrada embaixo da cama, onde tinha ficado durante, obviamente, toda a noite. Mas para ele, então a caminho de casa, já pensando na ducha quente e no conforto do sofá enquanto suas mãos procuravam as dela, isso já não importava mais.

Benilson Toniolo
Enviado por Benilson Toniolo em 27/03/2008
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