Nossa humanidade é uma utopia? Ou nossa humanidade ainda é imatura?




"O Iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são aqueles que se encontram incapazes de fazer uso da própria razão independentemente da direção de outrem. É-se culpado da própria tutelagem quando esta resulta não de uma deficiência do entendimento mas da falta de resolução e coragem para se fazer uso do entendimento independentemente da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso da tua própria razão! - esse é o lema do Iluminismo".
Immanuel Kant







     O pensamento de Kant acima aponta o período em que o racionalismo, em sua efervescência e destaque na história humana, apresenta-se como capitão da nau de uma nova embarcação, em tempo que outra antiga afundava, singrando por mares históricos e descobrindo novas conceituações acerca do entendimento humano. A fé dogmática imposta pela igreja secular fragmentava-se, entrava em convulsão. Da era do Renascimento, passando pelo século XVIII, o século das luzes, onde diversas correntes filosóficas convergiam e fomentavam novos modelos de pensamentos dos fenômenos acerca de toda a vida dos indivíduos nos âmbitos sociais, econômicos, políticos e científicos e culminando no século XX, um dos mais exaltados da história, tornam esses anos um pano de fundo histórico onde houve a amálgama da conceituação de um novo ser humano.

     A ruptura da sociedade feudal, o surgimento de movimentos revolucionários que impulsionaram a classe média daqueles tempos à situação de liderança enquanto a monarquia francesa entrava em declínio, o surgimento das economias e políticas liberais junto com a revolução industrial, passando pela análise do materialismo histórico de Marx e culminando no tiro de misericórdia na agonizante fé secular dado por Charles Darwin com sua obra ‘A origem das Espécies’ e tardiamente por Gregor Mendel, fundador da moderna genética, são fases de um período que mostram o palco do renascimento do ‘humano’ ou de nossa pretensa humanidade.

     O que dizer com isso? Que antes desses períodos de intenso questionamento não éramos humanos? Que tantos feitos antigos, inúmeras culturas, impérios, maravilhosas obras de construção do passado, artes e feitos gloriosos não pudessem ser assim classificados, como inspirações de nossa humanidade? Penso que nunca a conceituação de humanidade, dos valores classificatórios dos ideais e para a salvaguarda dos próprios ideais humanos foram tão patentes quanto nesses períodos. A revolução francesa com sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão promulgada em 02 de outubro de 1789, importantíssimo momento, ainda que insuflado de certa ótica burguesa da época e com o ranço do decálogo de Moisés, foi base da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 10 de dezembro de 1948, depois do holocausto provocado pela insanidade das duas grandes guerras mundiais.

     Foram grandes crises, grandes mazelas, muito sangue derramado e posteriores e emergentes reflexões profundas sobre o que fazíamos conosco, com nossos semelhantes, que impuseram o ideal do humano como um poderoso símbolo no Consciente Coletivo e no Inconsciente Coletivo de todos nós – Tomo emprestado, superficialmente, as terminologias dos conceitos de Emile Durkhein e os de Carl Gustav Jung - onde percebo que num processo sutil de conceituação, análise e projeção fomos tomando uma consciência do valor de irmos além da situação de subservientes filhos de Deus, oriundos de um Adão e uma Eva, segundo a fé secular, e muito mais do que homo sapiens, conforme a atual e mais embasada proposta das ciências arqueológicas, históricas e antropológicas sobre nossas ascendências primatas.

     Há um Consciente Coletivo que não permite mais nos vermos como não humanos. Ele se impõe como as leis de um estado onde já nascemos tendo de seguir as regras mecanicamente. No âmbito do Inconsciente Coletivo, um ‘homo simbolicus’ se perpetua em mentes refinadas, e até em não tão reflexivas assim, onde os conceitos de Deus, dos propósitos de nossas existências, dos nossos ‘como’?, ‘para onde’? e ‘para quê’? Permeiam-se em elucubrações físico-quânticas para conceder um sensato significado às inquietantes questões do sentido de nossas vidas neste planeta. Esse ‘humano’, essa recém- nascida ‘humanidade’, mal acaba de deglutir em sua tenra pré-infância contemporânea a sentença “Deus está morto” professada pelo pensador alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche, morto em 1900; no alvorecer do século XX, as guerras, a Teoria da Relatividade e o avanço genético pareciam muito profetizarem a assertiva do filósofo ávido pelo enaltecimento de um novo ‘homem’. É assim, nesse período de intensas e profundas mudanças que o ‘processo histórico’, como gostava de denominar o professor Darcy Ribeiro, passou como um rolo compressor em todo um modelo de vida e de ideais apenas alicerçados em fé secular. Afinal, permitamo-nos imaginar como pensava um artesão ou um camponês em plena Idade Média sobre si mesmo, sobre sua existência, sobre seus propósitos, sobre a vida e sobre a morte. E pensemos agora, nessas mesmas coisas sob a nossa perspectiva contemporânea. São dois mundos separados por um enorme abismo.

     Refletindo sobre tudo isso, será que nossa humanidade é uma utopia? Uma vez que no último século tivemos o desprazer de assistirmos muitas guerras, genocídios, aumento de milhões de famintos, pseudo-revoluções culturais, pseudo-comunismos, ditaduras militares que puseram em risco os itens da Declaração Universal dos Direitos Humanos, desproporcionalidade social entre ricos e pobres e banalização doentia da violência e da busca supérflua de artigos que concedem a ilusão da posse em detrimento de outro valor mais básico que deveria ser essencial à cultura do ser humano; diante disso, entre outras mazelas, o ideal de humano não está ainda maduro ou pode ser mesmo uma das maiores utopias, tão patente quando o socialismo com seu conceito de uma sociedade sem classes? Os absurdos que assistimos e lemos nos noticiários são elementos cancerígenos de uma sociedade que apresenta focos isolados de patologias que, sabemos, se não forem tratados ou extirpados contaminaram todo o resto, as novas gerações e demolirão nosso arcabouço institucional.

     Consoante as poderosas bases dos caminhos apontados pela evolução darwiniana (não aprecio o termo teoria, porque já sendo observados na prática seus princípios a expressão especulativa não lhe convém mais) e pela genética molecular, hoje fundidas na denominação Neodarwinismo, descobertas arqueológicas cada vez mais esclarecedoras sobre as origens do homem e demais registros e os avanços do mapeamento do cérebro pela neurociência, o ‘humano’ hoje que vislumbramos segue um caminho sem retorno, ousando apenas destituir-se de certas atrasadas e dispensáveis condutas e modelos de pensamento, que ainda vigoram no seio social dado a ineficiência dos sistemas educativos e da manipulação danosa dos veículos de comunicação que não formam indivíduos críticos. Na verdade, algo propicia esses soluços maléficos de atraso ao ideal humano: o modelo econômico vigente. Este preconiza sutilmente que ter é mais do que ser; induz, por um lado, um modelo estético quase similar aos ideais da raça ariana dos insanos nazistas e de outro é gerador de uma legião de doentes, obesos, hipertensos, diabéticos e demais distúrbios mantidos por uma indústria de alimentos venenosa, com isso polarizando comportamentos psíquicos nocivos que já atingem proporções no âmbito das saúdes públicas estudados pela neuropsiquiatria; difunde a informação maciçamente em doses homeopáticas como se fosse conhecimento precioso; torna a distração, o entretenimento engajado como cultura; e por fim ainda é aliciado por instâncias religiosas. Como o sangue do modelo econômico alimenta todas as artérias da sociedade, do estado, essa abdução religiosa ainda se faz perigosamente eminente. É algo que ainda não foi dissociado do poder. As crianças aos seis ou aos oito anos não têm que aprender o Pai Nosso na escola. Ora, se não ensinam preces budistas ou cânticos do candomblé, porque haveríamos de induzir elementos cristãos que só devem caber a família ou posteriormente ao próprio ser a escolha de sua senda religiosa? Da mesma forma porque há uma cruz cristã num foro de justiça, ou precisa-se jurar sobre a bíblia? Poderia ser sobre o alcorão, ou sobre o Bagavat Gita, não faria diferença. As religiões hoje não são mais singularidades geográficas, suas sementes e ideais estão difusas em todos os cantos do planeta e no seio de uma simples família seus membros podem optar por orientações religiosas diversas. A nossa Constituição no seu artigo 5º, no papel, parece-nos muito sensata. O que quero dizer é que o estado deve ser laico. O ensino deve ser laico. De religioso, apenas as disciplinas curriculares expondo todas as religiões, comparando-as, mostrando suas origens, desenvolvimento, contribuições sócio-culturais e também seus absurdos. O resto que fique por conta e introspecção e fé de cada pessoa em seguir ou não, tomá-la como estandarte ou não. Conhecimento e informação ministrados responsavelmente numa grade curricular bastariam para mostrar a todas as mentes o papel das religiões, não apenas de uma, em nossas vidas.

     Vemos então que temos e vivemos todo um momento especial para irmos além do estado de ideal humano, para a consolidação real de um humano que não careça ainda de antiquados modelos de pensamento que só tornam mais visíveis as dicotomias na psiquê dos indivíduos. Há algo que não foi completamente extirpado na alternância dos velhos modelos de vida e do novo humano que nasceu há pouco mais de 300 anos. E se isso parece de difícil aceitação para alguns, vamos refletir sobre um fato; há aproximadamente 12.000 anos atrás, em meio ao último período glacial, o ser humano, vamos chamar corretamente de homo sapiens, sobreviveu em pouquíssimos indivíduos por meio de um fenômeno denominado por antropólogos e demais cientistas por ‘gargalo cultural’, ou seja, os mais fortes num número reduzidíssimo de homens e mulheres legaram-nos muito do que somos hoje, inclusive fortes nuances da influência do nosso neocórtex que provavelmente constituiu-se num poderoso colaborador de interações neuronais, desenvolveu-se mais criticamente nesse período; inúmeras outras espécies foram extintas, dentre uma delas o mamute, apenas para citar uma. Esse feito extraordinário de homens, mulheres e crianças; visualizemos muito bem isso em nossas mentes, se deu pela união daqueles; é sabido que aqueles homens e mulheres eram extremamente unidos e determinados num propósito prático e básico. Parece que assim o éramos mais nos ‘tempos das cavernas’ do que nos tempos atuais. Pois parece bem claro que os agrupamentos, as revoluções, os movimentos e constância desses elementos fazem um grande diferencial no processo de sobrevivência da espécie e da continuidade de estruturas necessárias à mesma.

     Pode estar ocorrendo uma mudança latente tão silenciosa no âmago dos seres que não seja detectada por estatísticas ou percebida pela antropologia e demais ciências, como defendem muitos estudiosos em meios aos rumores de uma conspiração aquariana, difundida por teóricos da nova era, que é um foco de discussões nos subterrâneos culturais; tenho minhas dúvidas quanto ao poder de transformação coletiva desse movimento silencioso, apesar de me sentir muito atraído por essa idéia. A história, que apresenta seus efeitos cíclicos, já nos legou períodos similares no alvorecer do cristianismo que se difundia no primeiro século de nossa era, com os novos cristãos, muitos deles gnósticos, que se tornaram grupos isolados, quase agindo em segredo, influentes demais assim o sabemos, mas que foram caçados posteriormente por uma fé, que no século III de nossa era se associou ao Estado do Império Romano e execrou muitos de seus próprios ‘filhos’ e ‘irmãos’. Fato semelhante se deu na Revolução Francesa com o fanatismo de Robespierre. Por isso essa revolução silenciosa pode estar silenciosa demais, interiorizada demais. São certamente movimentos e mecanismos legítimos e que possuem singular importância. Se for o foco futuro para mais um fortalecimento do ideal humano, além do ideal, que assim seja; então aguardemos que as próximas gerações de humanos amadureçam o suficientemente para afastar quaisquer elementos que projetem sobre si sombras de uma sugestiva utopia. No momento atual, se ainda o é, se ainda moramos como maravilhosas obras da natureza num projeto do amanhã, que tomemos, que peguemos esse amanhã e o façamos aqui e agora já, pois o tempo urge e a razão aspira por nossa coragem de um urgente auto-aperfeiçoamento.





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Ronaldo Honorio
Enviado por Ronaldo Honorio em 28/03/2008
Reeditado em 21/11/2018
Código do texto: T920249
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