"A Vingança é Um Prato Que se Come Frio" = Crônica=

A cada passo que dava na calçada quente, sob um sol de trinta e sete graus, mais e mais xingava mentalmente a esposa. Por causa de uma mixaria, de uma quantia mínima, teria que pastar durante mais de hora indo a pé para casa. O pior é que de companheira havia apenas a fome que parecia colar as paredes de seu estômago.

- Cretina...unha-de-fome do cacete...muquirana...miserável...filha de uma puta muito grande...Quando era só eu a colocar dinheiro em casa, era só eu a pagar tudo e a sustentar a vagabunda, era o “viva a fartura que a miséria ninguém atura”. Agora que a ordinária arranjou emprego e está sustentando a casa, temporariamente, diga-se de passagem, é tudo contado. Centavo por centavo. Mas a putana me paga. Ah, se paga!! Tive que desinteirar o dinheiro da passagem por causa de uma merda de uma xerox e agora estou pastando nesse sol desgraçado...Que raiva daquela peste...

Era ódio puro o que ele sentia. Tinha visto o dinheiro na bolsa da mulher quando ela a abrira e de lá tirara o dinheiro contado para a condução dele, ida e volta. Ela acabara de receber o salário, um bom salário, e ainda por cima acrescido das horas extras. Uma bela quantia. Mas tivera a coragem de lhe dar apenas o dinheiro contado da condução para entregar um currículo no outro lado da cidade.

Ela sabia que ele era orgulhoso. Sabia que não pediria dinheiro a ela se houvesse outro recurso. Podia muito bem ter deixado um dinheiro a mais para um lanche, uma eventualidade, uma coisa a mais qualquer, como ele sempre fazia quando dava dinheiro a ela, nos tempos de seu excelente emprego. Um emprego que ele tinha vontade de chorar quando se lembrava que o perdera por pura e simples ingratidão dos patrões.

- Agora que a vaca está por cima da carne-seca a coisa mudou de figura. Agora é tudo no contado, tudo na base da economia no que se refere a mim...mas ela me paga. Ah, se me paga. Vou retribuir, centavo por centavo, toda a “generosidade” da cachorra. Juro que vou...

Distraído, cheio de raiva, nervoso e cansado, quase que passou sem perceber por um luxuoso carro parado praticamente no meio da rua. Ao volante uma senhora um tanto quanto idosa tentava fazê-lo pegar torcendo a chave sem parar.

Ele não resistiu à vontade de ajudar, mesmo que fosse apenas com um palpite.

- Senhora, boa tarde. Desculpe-me a intromissão, mas se continuar dando assim na chave a senhora acabará com a bateria do carro e terá dois problemas em lugar de um só.

- O senhor entende de carro?

- O suficiente para não passar aperto. Deixe-me ver se posso ajudá-la.

Podia. A distraída senhora simplesmente se esquecera de abastecer o carro e achava que era problema da parte elétrica.

- Se a senhora quiser posso buscar gasolina, mas no momento estou mais que desprevenido.

Sem hesitar a mulher tirou da bolsa duas notas de cinqüenta e quis entregá-las a ele, que riu e devolveu uma delas.

- Minha senhora, mesmo com toda boa vontade eu só conseguirei trazer uns dez reais de gasolina em um saquinho plástico.

O posto mais próximo não era muito próximo e ele levou mais de quarenta minutos para ir e voltar. Encontrou a senhora banhada em suor, mas sorridente ao vê-lo voltando.

- Acho que acabei mesmo com a bateria. O ar condicionado não funcionou de jeito nenhum.

- Mas a senhora estava preocupada, não é? Achou que eu sumiria com seu dinheiro.

Ela apenas riu simpaticamente.

Depois que ele colocou a gasolina no tanque do veículo, explicou a ela o que deveria fazer depois que o carro tomasse algum impulso. Logo mais, depois de dois ou três trancos, o motor roncava suavemente.

A senhora abriu a bolsa e fez menção de pegar dinheiro na carteira. Ele se afastou sorrindo e dizendo que por favor não se incomodasse. Não aceitaria nada. De maneira alguma.

- Mas alguma coisa o senhor me deixará fazer pelo senhor.

- Bem, nesse caso, se não for abuso de minha parte, até aceitaria uma carona até perto de minha casa.

- Então entre, moço, e me diga onde devo levá-lo.

No caminho o papo engatou facilmente e, contrariamente a seus hábitos, ele se abriu e contou a ela toda sua desdita nos últimos dezoito meses, desde que perdera o excelente emprego pelo qual sempre lutara por manter, todos os dias, desde que entrara naquela empresa.

- Mas você deve ter recebido todos os seus direitos...

- Recebi, mas como faz muita gente sem tino comercial, meti-me no comércio e logo perdi tudo. Estamos sobrevivendo graças ao salário de minha mulher.

- Qual era a empresa em que trabalhava?

Ele disse o nome e ela deu uma discreta risada. Uma curta risada de felicidade.

- Então, moço, seus problemas acabaram. Meu marido, ou melhor, a empresa de meu marido, acaba de encampar essa empresa que o demitiu. Vou lhe dar um cartão meu e a partir de amanhã você estará recontratado. Pode dormir hoje com esta certeza.

Tirando da bolsa o celular, a senhora fez uma ligação e logo depois voltou a falar com ele.

- Esteja lá amanhã às nove. Leve todos os documentos e dê adeus ao desemprego. Pelo tempo que sofreu desempregado você terá uma compensação. Farei questão que lhe dêem um aumento de pelo menos trinta por cento sobre seu último salário lá.

Ele entrou em casa pisando nas nuvens e encontrou a esposa chorosa, derreada no sofá.

- O que houve, amor? Que choro é esse?

- Corte na empresa. Mandaram todos funcionários mais novos embora. Estou no olho da rua. Agora imagine nossa situação...os dois desempregados...que vontade de morrer...

- Não se preocupe, minha querida. Consegui um emprego hoje.

- Coisa boa? Salário bom? Onde é? Quando é que começa?

- Calma, mulher, calma. Uma pergunta de cada vez. Um empreguinho simples, salário baixo, mas pra recomeçar está bom. Depois procuro outro. O salário ó...vamos ter que apertar o cinto ao máximo, mas pelo menos não passaremos fome.

- Antes isso.

- Não se esqueça: economia total. Nada de supérfluos como unhas pintadas em casa, cabelos cuidados em salão, roupas novas só depois de um ano, acho eu...Economia total. Contar centavos para sobreviver.

- Tudo bem, amor. Fazer o que, né? De qualquer jeito foi muita sorte nossa aparecer esse emprego pra você justamente hoje que eu perdi o meu.

Só uns quatro ou cinco meses depois ele contou a verdade a ela e afrouxou as rédeas. Mas durante esse tempo, que ela pagou, pagou. Chegou a comer berinjela, sozinha, fingindo que era bife, enquanto ele passava muito bem no restaurante da empresa. No restaurante da diretoria, diga-se.

E ele só afrouxou as rédeas porque era louco por aquela pão-dura linda.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 28/03/2008
Reeditado em 28/03/2008
Código do texto: T920919
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.