O sentido abstrato da vida

“Vê? É por isso que a vida simplesmente perde o sentido”

Não compreendo, disse eu.

Tenório apontou para fora do vidro, mostrou uma mesa de bar qualquer e disse: “Não necessito desse bar; nem do bilhar, nem do álcool.”

Continuo sem compreender, repliquei.

Olha, disse Tenório apontando para um centro que tinha escrito em sua porta “Centelha de Luz”, também não preciso disso; não mais.

O que quer, enfim, dizer? A clareza foge às suas virtudes?

Ele pareceu confuso; pensou por uns instantes; passou as mãos aos cabelos devagar, como quem procura paciência e não a acha. Por fim, continuou: Vícios? De que o servem? Nada, não para nós, que encontramos significado além na simples existência. Agora observe, que é a vida sem eles? Nada também. Um paradoxo? Talvez; não cabe a mim falar sobre isso. Observe: existem necessidades que não são supridas pela realidade da existência; outras necessidades, por sua vez, são devaneios da mente humana, que não distingue o bom do ruim – ainda que muito pareça que exista essa distinção. O que quero dizer-te, ó poeta, é simplesmente que quando se conhece a essência das coisas elas perdem o seu sentido, e isso entristece, mas não é ruim, pelo contrário; é o ápice do alcance humano, como a águia solitária em sua montanha.

Valjean falou como quem fala para o nada (sim, para o nada!). Não fixou meus olhos se quer uma vez em quanto se pronunciava, nem olhou para ver se eu me achava frustrado ou recompensado com sua citação; parecia que pouco importava pra ele. Aquilo soou-me como um desabafo – ainda que ele diga que não os comete. Indaguei então: você me fala, por outras palavras, que os vícios não te servem da essência das coisas, e que, porém, não precisa-los é sofrer. O quer dizer da vida, Tenório?

Segue tua vida poeta: é só isto. Que desejas tu alcançar em grandeza? Viver não é o bastante? Digo que as nossas carências se apegam em algo: em vícios, em paixões, em ilusões... Mas por que evitá-las? Não são elas em si a vida? Que te impede de seguir teu Deus e louvá-lo, como quem louva a uma pedra? Nada disso no fim importa; quero dizer-te isso. Por favor não me siga: o que entorno de mim é poeira mesclada a lágrimas. Cheguei aqui, sim... Nada disso preciso, e do quê preciso?! Preciso eu da necessidade de precisar? Sim, talvez! Quem sabe? Eu de minhas tantas ilusões ao menos sei o que não sou.

Fiquei calado por um instante, após refletir as palavras então encarceradas em minha alma, perguntei por fim o que sempre quis saber, e por medo distanciei de mim: Tenório, porque odeias o infinito?

Valjean parou, e dessa vez, como de um súbito, olhou pra mim e disse sem gaguejar uma palavra: O infinito? Me dizem que lá existe perfeição, que não precisamos de alimentos, nem de carros, nem de dor. Se não precisamos de dor, também não precisamos de religião para curar nossa dor, então diga-me: como a própria religião pode oferecer o que nega a religião? Como podem oferecer a ausência de dor, se sofrer é viver? Não posso crer nisso. Falam-me de um estado constante de alegria... Mas ora! Que é a alegria quando não existe dor? Como existir um sem o outro? É pura ilusão! E o maior de tudo: se chegamos a esse ápice, a essa ausência de necessidades alimentares, a ausência de fuga, a ausência de carência, de dor; Que iremos procurar, ó poeta? Que é a vida se não a eterna procura pela procura? Se dizem-me que tenho tudo, pra que viver? Ninguém tem tudo amigo poeta, ninguém! Pois se tiver não existe razão pra viver, não existe crescimento, nem arte, nem fé em si mesmo. Eis porque o infinito é tão distante de mim, eis o porque de tudo.