Série "Ditados na berlinda" 8: Cão que ladra não morde?

Na loja de quadros fica difícil prestar atenção aos detalhes. São muitas cores, muitas formas, uma enormidade de interesses visuais. Mas algo se movendo no meio de tanto colorido estático chamou minha atenção: era um gato vira-latas, cinza e amarelo, com um olho torto. Na verdade, uma gata: chamava-se Tarsila.

E era afetuosa, Tarsila. Chegou de mansinho (como chegam todos os gatos) e foi-se esfregando em minha perna. Seu pelo macio era um convite ao carinho: ela subiu na parte superior de uma grande tela abstrata que estava no chão, encostada na parede, e dali passou a ganhar meu cafuné.

Tarsila fechava os olhos, o bom e o defeituoso (a sua pupila vertical, a do olho direito, não era exatamente vertical, mas inclinada para o lado esquerdo, como um quadro pendurado torto na parede) e ronronava de prazer enquanto eu acariciava seu pelo macio. Quando me afastei para olhar um dos quadros de longe, Tarsila, sem mais o que fazer, passou a afiar suas garras no plástico que protegia a tela, encurvando seu corpo e elevando o rabo.

Degas entrou nessa hora. Um lindo gato macho de olhos verdes com uma pelagem branca desmaiada. Chegou de mansinho (afinal, era um gato também) e ficou atrás de uma tela de flores estilizadas que se apoiava no chão. Tarsila chegou perto, rondou-o e depois se foi.

Um garoto que acompanhava os pais na loja encantou-se com ele, mas foi advertido: “cuidado, Degas morde!”. O menino, visivelmente decepcionado, teve que conter sua ternura. Olhou o gato de longe e por ele foi olhado, até que o animal se cansou e seguiu Tarsila para dentro da loja.

Voltei ao local dois dias depois e, enquanto esperava o preenchimento de um formulário, Degas subiu sobre a mesa à qual eu estava sentada e ficou me orbitando. Ronronando baixo, esfregava seu pelo suave em meu braço. Hesitei na distribuição de carinho, afinal, Degas mordia, foi-me dito. Mas não me contive: como um gatinho assim carinhoso poderia morder? Então, passei a retribuir o toque, ao qual ele agradecia com um ronronar delicado e afetuoso.

Ficamos nesse idílio uns bons 10 minutos, nos acariciando, quando sem nenhum motivo e nem aviso prévio ele se virou abruptamente e mordeu minha mão. Soltei um grito, não de dor, pois o dentinho do felino (e sua fraca atuação) não foram suficientes para me machucar além de um quase imperceptível furo, que nem chegou a sangrar; mas gritei de susto. Fui pega à traição! Enquanto o acarinhava, no meio do cafuné, o traidor me mordeu... e pulou para longe em seguida, aparentemente satisfeito com sua atitude. Degas ficou escondido entre um pôster do Fred Astaire e outro da Ginger Rogers, com sua imagem duplicada por um grande espelho de molduras com pátina.

Bem mais tarde, conversando com um amigo, entendi tudo: o ditado está completamente correto. Se cão que ladra não morde, isso significa que cães que não ladram mordem. Ora, gatos não ladram, portanto...