"Relembrando Fatos Estranhos II" = Reminiscências=

Relembrando Fatos Estranhos II

Aos dezenove anos, recém saído do Exército em Belo Horizonte, onde servira como recruta, voltei para São Paulo. Voltei para a casa de meus pais, que haviam retornado um ano antes de mim e voltado a morar no mesmo apartamento no qual eu e meus irmãos havíamos passado a infância. Em vista do que relatarei a seguir, vale ressaltar que fomos a única família a habitar aquele imóvel desde sua construção.

Muito jovem ainda, cooperando ativamente com as finanças da família, muito cheio de trabalhos e responsabilidades, confesso que era um tanto quanto nervoso e agitado, se bem que sempre bem humorado e gostando de lidar com as pessoas, fossem clientes, amigos, vizinhos ou simples conhecidos. Em resumo, meu nervosismo era apenas para consumo interno. Uma agitação que parecia ser de uma pilha excessivamente carregada.

Algum tempo depois de minha chegada, havíamos restabelecido a rotina de ficar conversando até meia-noite e meia ou uma hora da manhã. Da conversa participavam meus pais, eu e meu irmão um ano mais novo que eu. Conversávamos, tomávamos café, fumávamos, ríamos muito ou discutíamos sobre vários assuntos na sala da casa enquanto meus quatro irmãos menores dormiam.

Quando íamos nos deitar, eu, até sem perceber, seguia uma rígida rotina colocando todas as seis cadeiras em volta da mesa, limpando os cinzeiros e levando o bule vazio para a cozinha. Era sempre o último a ir deitar.

Assim que eu fechava a porta do corredor, o que dava para os três dormitórios, a sala ficava como um compartimento estanque. Um compartimento isolado onde seria impossível entrar alguém. A janela da sala, única e grande, era fechada com uma corrente grossa e cadeados; a porta da rua tinha duas trancas além da chave, e a porta da cozinha, que dava para a pequena área de serviço, também era bem trancada.

Todas as noites, mais ou menos às três ou três e meia da madrugada, eu me levantava para urinar e tomar mais um café antes de voltar a pegar no sono. (Diferentemente da maioria, café para mim é imprescindível para dormir bem). E todas as noites, ao passar pela sala, eu notava que as cadeiras estavam fora de seus lugares. Sempre um tanto quanto afastadas da mesa. E aquilo me intrigava.

Uma noite lembrei-me do assunto e resolvi ficar acordado e vigiando. Fechei a porta do corredor, sentei-me na privada completamente vestido, com a porta do banheiro escancarada, com um livro nas mãos, e atento a qualquer ruído na sala. Claro que antes eu havia colocado todas as cadeiras em seus lugares e verificado as portas e a janelona de correr da sala.

Uma hora e tanto depois saí do banheiro e abri a porta do corredor. Meus cabelos se arrepiaram quando vi uma cadeira em cada canto da sala e apenas duas perto da mesa, mas viradas de costas para ela. Fechei depressa a porta e bati na porta do quarto de meus pais para relatar o que acontecera. Meu velho, como sempre, fez pouco caso da coisa. Achou que era apenas imaginação, impressão minha, bobagem de quem estava com sono, etc.

No dia seguinte, por coincidência, eu e meu pai chegamos juntos ao lado de dentro da porta do corredor. Ele saindo do quarto em direção à cozinha e eu saindo do banheiro. Nesse momento ouvi um barulho de coisas se arrastando na sala e peguei meu pai pelo cotovelo.

- Pai, você viu que as cadeiras estavam em ordem, não viu? Lembra que passamos juntos pela porta do corredor e viu que ninguém mais passou por aqui, não lembra?

- É...Estavam sim. Lembro. A turma já foi toda dormir.

- Então abra essa porta agora, pai. Abra você e olhe.

Meu pai abriu a porta e deu de cara com uma cadeira encostada no batente. Os pés encostados em um lado da porta e o espaldar em outro. Colada à porta do corredor. As outras estavam enfileiradas junto à parede maior da sala.

Meu velho apenas me olhou com cara de intrigado, resmungou qualquer coisa e foi dormir.

Depois dessa noite nunca mais vi uma cadeira sequer fora do lugar na madrugada. Ainda bem, porque elas se mexendo sozinhas ou não, meu café depois da urinada era sagrado.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 06/04/2008
Código do texto: T933642
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