"Relembrando Fatos Estranhos III" = Uma Santa Particular= Reminiscências

Não conheci minha bisavó, mas pelo que ouvi na família, ela era uma versão piorada de minha avó materna, o que me leva a pensar que ela foi terrível, visto que minha avó primava pela boca dura, pela franqueza grosseira, pelos ditos que machucavam e ofendiam, e pela total insensibilidade com relação a muitas coisas, além de uma absoluta falta de senso de humor. No fundo, no fundo, tinha lá suas boas qualidades...

Essa minha bisavó teve em sua casa uma empregada negra, que na verdade deve ter sido sempre tratada como uma escrava, chamada Luciana e apelidada Nana.

Aos dezoito anos de idade Nana ficou completamente cega ao ter os olhos furados por espinhos de uma roseira. A cegueira não a tornou uma pessoa amarga ou revoltada. Creio que com o tempo a aceitou bem e adaptou-se à nova condição. Com o passar dos anos tornou-se uma engomadeira de primeira, uma excelente lavadeira, e uma pessoa maravilhosa para cuidar de todos os seis filhos de minha avó. Meu pai e todos seus irmãos a adoravam. Só minha avó demonstrava sempre sua impaciência com ela, tratando-a com pouco caso e fazendo-a lembrar-se de vez em quando que não passava de uma cega e que se não estivesse na casa dela estaria na rua pedindo esmolas. Nana apenas balançava os ombros, resmungava alguma coisa e ia cuidar de seus muitos afazeres.

Em 1961 nós morávamos no Paraná, em Londrina, e as ligações telefônicas eram difíceis, caras e demoradas demais até se conseguir. Com essa desculpa a família de meu pai, em Belo Horizonte, deixou de comunicar a ele o falecimento de sua querida Nana, ocorrido um mês antes de ele, por um acaso, ficar sabendo.

Em uma certa madrugada meu pai e minha mãe acordaram ao mesmo tempo, assustados, ao sentir alguém sentando-se à cama deles. Ao verem quem era os dois gritaram ao mesmo tempo o nome da Nana.

Seria necessário escrever um muito longo artigo para contar todas as vezes que Nana nos ajudou a encontrar coisas e resolver problemas que pareciam insolúveis. Tantas vezes que acabamos, de certa forma, por elegê-la uma santa particular de nossa família. Nunca deixamos de encontrar um documento importante, por exemplo, depois de solicitar à alma de Nana que nos ajudasse.

Mas um caso sobre ela, por me parecer mais importante, conto aqui: uma certa noite resolvemos embarcar todos na Kombi da família e dar um passeio até Belo Horizonte. Queríamos visitar a parentada, matar as saudades da terra natal de vários de nós, dar um bom passeio por alguns dias e as condições estavam favoráveis para isso. O veículo estava em aparente ordem, tínhamos o dinheiro para as despesas e, principalmente, muita disposição para dirigir passeando. Minha namorada foi autorizada pelos pais a ir conosco. Profissionais da estrada, com centenas de viagens no currículo, gostávamos de viajar durante a noite para evitar os famigerados "domingueiros".

Alta madrugada, noite escura feito breu, com um céu preto, sem lua ou estrelas, íamos viajando e ouvindo meu pai cantar o tempo todo, como de hábito. Os menores dormindo, eu e minha namorada namorando, minha mãe vigiando o céu por causa de seu eterno medo de discos voadores, quando de repente a Kombi simplesmente “morreu” e parou. Acordaram todos com o “Minha nossa!!” assustado de meu pai.

Com a Kombi no acostamento, meu pai achou melhor que todos descessem e ficassem alguns metros adiante da perua, recomendando que ninguém se aproximasse muito do mato cerrado à beira da estrada.

Nossa urgência era arranjar um jeito de fazer algum sinal pedindo ajuda, já que nossa lanterna estava com as pilhas arriadas. O local era extremamente deserto, perigoso demais para uma família ficar ali parada, e os poucos caminhões que passavam desciam em alta velocidade. Um deles poderia bater na Kombi e causar uma tragédia.

Tentamos tirar alguma gasolina do tanque para acender um fogo alto, mas o caninho de plástico caiu dentro do tanque e não conseguimos resgatá-lo. Resultado: o único jeito que encontrei foi ficar acendendo direto um pequeno isqueiro, fazendo-o piscar sem parar. Quase invisível o meu sinal.

Depois de um bom tempo parados ali, cheios de preocupação, os menores chorando já um tanto quanto apavorados, quando uma Kombi passou em alta velocidade e nem ao menos a diminuiu ao ver aquela família reunida à frente do carro.

Assim que ela passou minha mãe disse alto:

- Gente, vamos todos ficar sossegados.Acabei de rezar pra Nana e logo virá um socorro pra nós.

Alguns poucos minutos depois a mesma Kombi que passara voando voltava bem devagar em sentido contrário e o motorista nos examinava com a ajuda de uma possante lanterna.

Aproximou-se bem devagar, ultrapassou nossa Kombi, fez a volta na estrada e estacionou atrás de nós.

O homem desceu, levantou o capô de nossa perua, mexeu em alguns fios e disse a meu pai que ligasse o carro. Foi ligar e acender tudo de novo.

Meu pai quis pagar pelo conserto depois que o homem disse que era eletricista de auto, mas ele não aceitou. Exigiu apenas um pagamento: que contássemos a ele o que é que o fizera nos socorrer. Que força o obrigara a dar a volta e vir em nosso auxílio, já que nos mais de dez anos que morava por ali jamais prestara socorro alguém à noite por medo. Naquele trecho aconteciam muitos crimes e ninguém que tivesse algum juízo estacionava ali por muito tempo.

- Gente, eu nunca parei aqui. Nunca mesmo. Mas depois que vi vocês alguma coisa me obrigou a voltar. Uma coisa estranha mesmo, uma sensação esquisita de verdade...E olha que já cansei de ver famílias paradas por aqui e nunca tive coragem de parar para ajudar. Preferia perder dinheiro do que arriscar. Sabem como é, né? Tem bandido que traz até a família pra ajudar no assalto.

Quando meu pai contou a ele, de forma resumida pra gente ir embora logo, algumas coisas sobre a Nana, ele perguntou se poderia também rezar pela alma dela quando precisasse.

“Dono” da santa particular, meu pai autorizou todo sorridente.

Tenho vários outros casos sobre a Nana e os contarei em

breve. O apelido dela pronuncia-se como se fosse Ana com

um "n" à frente. O caso acima relatado aconteceu em 1968.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 06/04/2008
Reeditado em 07/04/2008
Código do texto: T934446
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