"QUEM O CONHECERÁ?"

Minha avó vez por outra repetia a seguinte frase: “Coração de gente é terra que ninguém nunca andou.”, não sei se de sua autoria ou se um provérbio antigo desconhecido por mim. Uma frase curta que , embora fugindo à regra gramatical, transborda de sabedoria e era isso que chamava minha atenção. Sempre que nós, filhos e netos, estávamos muito entusiasmados com alguém ou quando nos doávamos demais a uma amizade, sempre que estávamos diante de alguém conhecido não conhecido o suficiente por nós ela repetia a frase. A minha mente ainda imatura ficava a imaginar uma terra estranha, sem caminhos trilhados, uma mata fechada. Perigos escondidos por todo lado, mesmo na paisagem mais bela e encantadora. E pensava nos cuidados que deveríamos ter. andar um passo a cada vez, vagarosamente, tomar cuidado com os frutos das árvores, poderiam ser venenosos. Contemplar e desbravar a terra, mas saber que a qualquer momento poderia surgir algo que nos surpreendera. Sábia minha avó.

Hoje penso nesse ditado em relação a cada um de nós. Esse comboio de cordas que é capaz de disparar diante das emoções e ao qual associamos ao amor, ódio, alegria, tristeza. Ele é uma verdadeira mata selvagem, fechada, com alguns caminhos trilhados, uns por trilhar e outros que nunca serão. Os trilhados são conhecidos nossos e dos outros também. São tão certinhos e previsíveis que quando resolvemos abrir uma nova rota é espantoso para todos inclusive para nós mesmos. Encarar trilhas novas, antes desconhecidas ou ignoradas por nós, é algo espantoso mesmo. Assim acabamos não nos aventurando em alguns terrenos não explorados, talvez porque saibamos muito bem o que iremos encontrar lá.

Não é à toa que vemos sempre referência a ele. As escrituras, por exemplo, nos mostram várias. Uma delas diz o seguinte: “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?”. Parece que caminhamos por dentro dele, que se doa, sofre, se alegra e nos conduz até o que desejamos. Nos coloca face a face com o que fugimos ou não queremos ver. Estamos diariamente desbravando as terras do nosso coração porque não o conhecemos completamente. E é lá nessa terra desconhecida onde ninguém andou que se escondem os mais profundos dos nossos desejos.

Friederick Nietzsche diz o seguinte: “Coração atado, espírito livre. – Quando se amarra e se mantém preso o coração, pode-se dar ao espírito muitas liberdades: já o disse uma vez. Mas não me acreditam ao menos que já o saibam.”. Penso que não o sei, ou ainda não compreendo esse provérbio do filósofo. “Um coração alegre é bom remédio, mas o espírito triste seca os ossos.”, estão aí, citados juntos num provérbio de Salomão, coração e espírito. Se ato o coração entristeço o espírito. É assim que vejo: coração alegre (mais eficaz que qualquer medicação), espírito alegre, consequentemente corpo revigorado. Não consigo visualizar liberdade de espírito num coração atado.

Um médico ou cientista conhecedor da anatomia humana poderia questionar: ‘ Por que relacionar o coração às emoções e ao vigor físico se é do cérebro que partem os estímulos?’. Diria certamente que falar do coração é algo poético. Eu fico com a poeticidade, com a linguagem metafórica e com os simbolismos que são usados na tentativa de expressar o que sentimos. Não precisamos comprovar cientificamente, sabemos. Prefiro todo mistério que cerca os caminhos do coração às explicações científicas do seu funcionamento mecânico.

Silvia Pina
Enviado por Silvia Pina em 08/04/2008
Código do texto: T937212
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