SEGREDO REVELADO

          A conversa, relatada, os dois se conheciam fazia pouco tempo e estavam num momento de intimidade, foi assim:
          -Conte-me o seu segredo, quero conhecer o seu segredo.
          Ela não entendeu: -Segredo, qual segredo? Eu não tenho nenhum segredo...
          -Tem, sim! Todos nós temos um segredo.
          -Eu não tenho nenhum. O que você quer saber?
          -Sempre há algo a nosso respeito que não queremos que os outros saibam...
          -Ainda não entendi.
          -Algo em nosso corpo, algum defeito.
          Ela achou que a verdadeira intenção não era essa, mas respondeu:
          -Eu tenho celulite!
          -Isso todas vocês têm. Mesmo as bem jovens.  Eu pergunto sobre algo mais íntimo. Algo que se você não contar, ninguém perceberá. Por exemplo, por causa do meu acidente de carro eu tenho uma lesão no olho direito e ele é meio torto. É quase imperceptível. Se eu não contar, ninguém nota. Esse é o meu segredo.
          Naquele momento ela nem se deu conta do que acontecia...

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          Dia de oftalmologista. Há algum tempo atrás, ao acordar, pisei em cima dos óculos que haviam caído no chão durante a noite. Isso foi antes dos tempos do PC, quando então, sem um teclado, eu lia até alta madrugada. Apesar dos reparos, a peça indispensável foi perdendo cada vez mais a estrutura, até que os parafusos espanaram e não houve mais jeito.

          Depois de algum tempo, tornou-se impossível colocar aqueles  óculos no rosto e mantê-los  numa posição fixa, tornar seu uso apropriado e confortável. Por questão de falta de tempo, de outros vários compromissos, fui deixando a consulta para a semana seguinte.

          Hoje, porém, decidi que não era mais possível esperar. Juntando todas as premências, o último par de lentes de contato vencendo, uma pequena irritação nos olhos por falta de descanso, decidi que não esperaria mais. Liguei logo cedo para o consultório e pedi para falar com a Doutora.

          -Ela está em consulta, mas talvez eu possa ajudar... Não gosto muito dessa frase. Quando procuro alguém diretamente, estou focada nisso e acho que não há quem “talvez possa ajudar”. Mesmo assim, resolvi arriscar. Disse que era prima dela, paciente particular e, como tal, ela preferia atender-me nos fins de semana. Isso faz valer minha consulta em muitos sentidos porque vai muito além dos minutos de praxe, colocamos todos os assuntos e leituras em dia, além de (ela mora em outra cidade a uns quarenta minutos de viagem da minha) eu ganhar almoço, lanche e jantar e carinhos de tia, atenções de todos. Mas desta vez, quero a consulta para hoje. Converse com ela que depois eu ligo para saber a resposta, respondi.

          -Podemos marcar sem falar com ela, disse rápida e eficientemente, sem conhecer quais as implicações do meu pedido.

          Resolvi aceitar e marquei para as quinze e quinze.

          Com o advento dos convênios, consultas são marcadas de quinze em quinze minutos, uma forma de “over book”, segundo me foi explicado por outra pessoa. Isso significa que aquele médico precisa atender muito mais pacientes para ter um ganho equiparado ao do que atende apenas consultas particulares, em número menor. Significa também que muitos pacientes não são pontuais e faltam às consultas sem desmarcar. Não se importam porque pagam um “Plano de Saúde” e têm vários médicos à disposição. Se este deixar de atendê-los, procuram outro.

          Tenho um plano de saúde, mas preferiria não tê-lo. De qualquer forma, para ortopedista, oftalmologista e certos exames de rotina, escolho pagar.

          Cheguei no horário apesar da chuva e não esperei. Conversamos um pouco e eu fui cortando os meus assuntos porque havia outros pacientes e percebi que com minha liberdade estava interferindo nos passos propedêuticos. De qualquer forma, como já havia interferido, falei: -Vamos à consulta?

          E fomos. Depois de verificar a data do exame anterior e o grau, ela jogou uma tela iluminada na parede. Eu disse que ali, não estava vendo nada. Ela respondeu que ainda bem, porque não havia nada mesmo. Em seguida projetou uma letra enorme:
          -Essa você enxerga?
          -Rimos,  as duas.

          Ela dá o ritmo, mas a consulta não segue um padrão normal.
          Chegamos ao momento das leituras.
          Comecemos pelo olho ruim, ela diz. Eu lembro imediatamente de um almoço em minha casa, quando lhe disse que eu não entendia porque ela falava assim. Afinal percebo que é importante para mim usar os dois olhos e que enxergo melhor com os dois. Noto, isso sim, que quando estou diante de alguém, eu  olho de viés, isto é, com meu olho direito olho o olho direito da  outra pessoa. Esse é o meu segredo. Algo que não quero revelar porque não quero declarar o meu problema.  O meu olhar não é frontal. Ela sempre havia dito que o olho esquerdo me permitia ter campo de visão,  aquele dia explicou que ele me fornecia também a noção de profundidade, mas afirmou:
           -As células corticais visuais  desse olho,  por falte de uso, não funcionam mais...
          Brinquei com ela e disse-lhe que aquela era uma forma elegante de me chamar de caolha.
           Fui muito direta e apesar da imensa liberdade que temos ela ficou sem graça. pedi desculpas...

          -Você pode ler?
          - Cinco, dois, dois, sete, três.
          Isso já mais no fim da consulta, depois de todas as leituras, maiores e menores, os números que me eram apresentados.
           - Se eu fizer assim, melhora ou piora? Isso avalia a visão subjetiva, explicou-me depois.
          E fomos melhora, piora, volte por favor, melhora,  piora, até chegarmos ao ponto crucial:
          Olho esquerdo, amblíope, baixa visão.

          -Você pode ler?
          - Cinco, sete, três.
          -E agora?
          -Cinco, dois, sete, três.
          E  o tamanho foi diminuindo, diminuindo...
          Finalmente, ela colocou uma série na tela e comentou:
          -Esse, você não consegue ler...
          -Consigo sim, respondi.
          Ela admirada:
          -Consegue?
          Antes que explodíssemos em risadas que seriam ouvidas com certeza na sala de espera, não fosse a sala de consulta hermética, sem distinguir letra alguma, tão pequenas eram, respondi convicta, para provocá-la:
          -Ponto... ponto... ponto...ponto.