A redação surrupiada

Estava à cata de informações. Não era fácil, nos idos dos anos 60, principalmente com a imaturidade dos 13 anos. Mas havia o jornal, a tv, as revistas e principalmente a imaginação. A Apollo 11, a primeira missão com sucesso, com Neil Armstrong pisando na lua e surgindo nas telas da tv, numa imagem entrecortada de chuviscos e emoção. Fizera a redação com cuidado, tentando ser o mais verídico possível, sem ser previsível. Naturalmente não possuía esta percepção de previsibilidade, mas intuitivamente eu tentava ser original, pelo menos, esforçar-me para transformar o texto num produto bem elaborado. Enveredava sempre que podia, pela imaginação, transportando meu mundo interior fundamentado na fantasia do espaço para o papel, procurando ver o que meu coração via, transmitir os que meus sentimentos permitiam. Aquela nave maravilhosa, desenhando no céu uma centelha de luz, trazendo a nós, terráqueos, uma visão tão próxima da lua, com a certeza de que os astronautas pisavam pela primeira vez no solo inatingível.

Desta forma, realizei a composição, se não a melhor, uma das melhores de minha carreira de estudante, tanto que foi parar no jornal.

Certo dia, o diretor da escola, um frade austero, de olhar frio e perscrutador, adentrou a sala, invadindo a aula de português. Nosso professor, Irmão PL. recebeu-o com cortesia. Um meio sorriso nos lábios, uma ansiedade contida, um torcer de mãos sob a batina branca, talvez na mesma expectativa em que estávamos mergulhados. Ele era alto, cabelo ralo, nariz adunco, mãos grandes, dedos peludos. Tinha um olhar tranqüilo, mas havia neles uma interrogação, que me inquietava. Talvez não exatamente por sua causa, mas pela minha maneira de examinar as pessoas, de observá-las, de ver nelas o que minha imaginação anunciava, já em tenra idade. Eu fiquei circunspeto, sem muita expectativa, a não ser imaginar algum tipo de norma reformulada ou talvez um feriado religioso, no qual tomaríamos parte em alguma solenidade. Magro, mãos sobre a mesa, olhar atento, cabelo caído na testa, a la Beatles, observava a cena se desenrolando lá na frente. Meus colegas cochichavam, faziam mil esforços intelectuais para descobrir o motivo do diretor aparecer assim, em nossa sala de aula, de súbito. De repente, ele desandou a falar. Dizia algumas frases, citou a nossa turma como bem preparada na aula de gramática portuguesa, deu conselhos habituais e citou o meu nome. O meu nome? Perguntei-me atônito, a que se referia. Claro que perguntei mentalmente, sem abrir a boca ou piscar os olhos. Ele então pediu que eu me levantasse. Obedeci, pernas trêmulas, joelhos batendo um no outro, coração aos pulos. Não sabia o que pensar, o que dizer, o que imaginar. Nem passava pela minha mente confusa, qualquer indagação que não fosse uma temerosa culpa por alguma atitude indevida. Ele então, mandou que eu sentasse, o que fiz de imediato, deixando cair os braços sobre a carteira, mãos presas na caneta, desenhando despudoradamente a folha de textos, tentando agir de alguma forma o que meu corpo ansiava por fazer. Fugir. Não movia um músculo. Não piscava. Ele então prosseguiu elogiando a redação que eu fizera, acrescentando que havia sido muito bem analisada pelos professores e que, em virtude da qualidade do conteúdo seria publicada no jornal da cidade. Quando afastou-se, os colegas todos me olharam, juntamente com o professor, que parecia abalado, pois nada dissera a respeito. Nem me cumprimentara. Houve mil brincadeiras, mil apelidos, culminando por me chamarem de poeta. Para eles, qualquer um que escrevia razoavelmente era um poeta. Ou talvez de uma forma pejorativa, realçando uma sensibilidade acerbada, que interiormente não admitiam para os meninos. Não sei. Coisas que talvez Freud explicasse. No intervalo, as brincadeira se sucederam. Mas eu estava feliz, imensamente feliz, porque o meu texto fora analisado, elogiado e comprovado publicamente que tinha qualidade.

Passou alguns meses e eu escrevia cada vez mais. Além das redações obrigatórias, criava histórias, pequenos contos ou imensos romances, pontuados de ação, aventura, emoção, amor. Todos os sentimentos que imaginava para os personagens e seus envolvimentos nas tramas.

Num dos sábados, em que se realizava o grêmio literário da escola, estava com toda a turma, inclusive com nosso professor, assistindo os trabalhos dos colegas. Havia também professores de outras disciplinas, que participavam das apresentações, numa espécie de confraternização entre os responsáveis das várias áreas do conhecimento. Alguns pais também faziam parte do auditório. Enumeravam-se poesias, crônicas, textos enfim apresentados na sala de aula, em trabalhos ou nas provas, que teriam sido julgados como os melhores trabalhos e dignos de serem mostrados à comunidade escolar. Em determinado momento, o professor que apresentava os alunos, chamou um dos meus colegas de turma. Todos ficamos aguardando na expectativa da apresentação. Era um menino de cara rechonchuda, vermelha, de olhos escuros, bem vivos, e um sorriso imenso nos lábios. Era o guri popular da turma. Parecia tranqüilo, quase feliz. Abriu uma página datilografada e antes que se pronunciasse a respeito do tema, o professor anunciou tratar-se de uma redação sobre a chegada do homem à lua, ou seja, a Apollo 11. Meu coração revirou-se, em saltos. Os meninos me olhavam, criticavam, diziam tratar-se de minha redação, eu é que deveria estar lá, no palco, lendo-a. Ele começou a ler, voz clara, bem colocada. Não modificou nenhuma palavra, nenhuma vírgula, nenhuma pausa. Meu coração sim, quase pausava. Meus lábios tremiam, tensos, incapazes de pronunciar uma sílaba sequer, músculos paralisados, pernas cravadas ao solo, como estacas inanimadas. O professor de português, ao nosso lado, impassível. Não foi capaz de informar que aquele texto havia sido escrito por mim. Não fora capaz de defender-me. Como eu, no meio daquele público todo, poderia sair gritando que a tal composição era minha, que havia sido inclusive publicada no diário da cidade e elogiada pelo diretor da escola. Não, não poderia. Não tinha coragem para tanto.

Ali, conheci a mão pesada do apadrinhamento, da covardia dos mestres, do interesse dos superiores. Deixaram-me na lona, Davi perdido, sem enfrentar nenhuma fera ou qualquer gigante. Perdido, acabrunhado, triste. Ali, conhecera a duras penas, o significado do plágio. Mais do que o plágio, a predileção por um aluno em detrimento do outro. Se ao menos, nomeassem o autor do texto, eu me conformaria. Mas todos os créditos foram para ele. Todos os louros. Todos os aplausos. Pra mim, sobrou a vergonha de não ter me levantado contra aquela injustiça. Sobrou a crítica dos colegas, por meu acanhamento. Sobrou a minha autocrítica por minha fraqueza.

Felizmente, sobrou também a vontade de lutar, de mostrar ao mundo o quanto posso fazer em termos de literatura, sem o medo do fracasso, pois se ocorrer, será somente meu.

Gilson Borges Corrêa 09/04/2008

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 10/04/2008
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