Boazinha só se fode! (Virando Malvada - Parte I)

Decidida a retomar meus tempos áureos de malvada, acordei e vesti minha malha chiquérrima de fazer caminhada.

Planejei, ansiosamente, chutar cada cachorro velho que sempre ladrava para mim enquanto eu percorria os 6km da Major Baracca. Andando pelas ruas do bairro, não encontrei nenhum daqueles vira-latas sarnentos que costumavam a me amedrontar. Eu queria que eles pudessem provar de minha nova personalidade malévola.

Eis que me deparo com uma cadelinha magricela que, vez ou outra, latia transformando minha tranqüila caminhada em corrida de longa distância. Olhei para a pulguentinha com toda repugnância de meu coraçãozinho de pedra. Ela também olhou para mim, encurvou as costas como se fosse me abocanhar. Pensei comigo mesma: “é agora que te chuto”, mas me contive. Os olhos da cadelinha brilhavam como nunca e seu rabinho balançava extasiando felicidade. De repente, ouço uma mulher gritar: “venha Maria Eduarda, entre!”. Poxa, como eu poderia maltratar uma cadelinha esguia chamada Maria Eduarda? Que nome lindo! Maria Eduarda entrou e eu prossegui.

Avistei uma pomba comendo uma macumba. Eu deveria deixá-la devorando a oferenda que algum desesperado fez a um desses orixás. Malvada que é malvada permitiria que toda a macumba fosse digerida e, ainda por cima, chutaria o prato de barro dando uma tremenda gargalhada. Não, não, não! E lá fui eu espantar a pombinha para a felicidade dos orixás africanos e de seus devotos.

Depois do almoço, peguei a lotação esperando o momento certo de aplicar meu ritual de malvadezas. Não demorou muito para um velhinho sentar à minha frente. Analisando meu manual de como voltar a ser malvada em 24 horas, cheguei à conclusão que velhinhos, bichinhos e criancinhas são os melhores alvos para seres sem coração nem piedade, como eu, é claro.

Observei que o velhinho cambaleava, olhava para tudo o que é lado e parecia, senão bêbado, que estava muito doido. Pensei, “deixe só este gagá me azucrinar para ver o que farei. Darei uma bica no velho quando ele estiver descendo as escadas da lotação, assim, como quem não quer nada”. Empostei a voz como se eu fosse uma PM sapatão de 180 quilos e disse: “e aí, tiozinho, qualé que é?”. O velhinho estendeu suas mãos trêmulas entregando-me um bilhetinho: “Meu nome é José Bernardo Cândido, RG tal, CPF tal, moro na rua tal e tenho dificuldades para me comunicar por causa de três derrames que sofri. Caso eu tenha algum problema, por favor, avisar minha filha Cida no número tal”. Ai, ai, ai... Lá fui eu ligar no orelhão para a filha do velhinho ir buscá-lo na estação Tucuruvi. Ele estava perdido. Fiquei lá, por quase uma hora, segurando seu braço e dizendo: “ Não, Sr. Bernardo, não fique com vergonha, eu também já me perdi um dia”.

Seria um teste divino? Eu estava tão empenhada em tornar-me bruscamente uma menina má e tive que exercer minha função de boa samaritana?

No metrô, fiquei caçando a oportunidade de virar o jogo e ser má, muito má, má mesmo. Na estação Tietê entra no meu vagão uma mulher que pediu a atenção de todos e disse em tom monocódico: “Estou D -E -S -E -M -P -R- E-G -A -D -A, não tenho

M- A -R- I- D -O, tenho três filhos para A -L -I -M- E- N -T -A- R. Aceito ajuda, vale-transporte, moedas e tiqui”. Tiqui? Que história é essa de tiqui? Acho que a mulher quis dizer ticket, mas para não perder a fama de má, quando ela chegou bem perto de mim, passei a piscar os olhos desordenadamente dando tranquinhos no ombro como se eu tivesse um tique-nervoso.

A mulher parou diante de mim e começou a me observar seriamente. Queria que ela se enfezasse para que eu pudesse ter um “piti”, mas não. Olhava-me com piedade, como se pensasse que mesmo ela tendo tantos problemas, ainda assim não chegavam perto dos meus. Ela era tão simples que não entendeu minha piadinha de mau gosto. Estava comovida com minha situação. Antes que ela me oferecesse ajuda, entreguei-lhe umas moedinhas e desci na estação seguinte, morta de vergonha.

Na Barra Funda, meu destino final, olhei para o céu e disse : “Olha, cara, que brincadeira é essa? Tá me tirando, tá?! Eu sou má, e se não sou ainda por completo serei um dia, entendeu? Não adianta me ferrar porque antes, quem ferra você, sou eu. Sacou?” A resposta veio rapidamente. Começou a chover incessantemente. Percebi quem mandava no pedaço.

Achei melhor deixar minhas tentativas de me transformar em um monstro para uma próxima ocasião. Estava tudo dando errado, se bem que, neste caso, o errado era a coisa certa para se fazer.

Ser malvada dá mais trabalho do que ser uma pessoa correta. Como diria o digníssimo filósofo contemporâneo Latino : “quem planta a sacanagem, colhe a solidão”.