A BOCA DA MORTE... (CHEIA DE DENTES?)

Diz a lenda, no pré-primário, certo dia papai foi me buscar na escola e eu estava tristíssima, agitadíssima e superlativíssima (e olha que nem tinha TPM naquela época), enfim...

- “Quê que foi?”

- “O pai da Fulaninha veio buscá-la (buscar ela, claro, dá um desconto, eu tinha o quê? Uns cinco anos de idade.) mais cedo hoje, porque ela perdeu a mãe...”

- “Ah é...” (condoído)

- “É... perdeu... num sei se achou...”

E vou morrer defendendo que minha interpretação era muito mais lógica, afinal, se “perdeu” quer dizer “morreu”, já morreu mesmo, porque a pressa?

Mais confuso que ser criança metida a gente grande, só a língua portuguesa mesmo... mas convenhamos, o verbo “perder” não ajuda... muitos anos depois, já na selva de pedra, meu primeiro assalto (na condição de vítima – nesse e em todos – esclareça-se), o anúncio foi “Perdeu! Perdeu!” e, confesso, levei uma fração de segundo pra entender que era “perdeu o relógio, perdeu a carteira, perdeu o carro... e não pia senão perde algo mais”.

Não se engane, leitor desavisado, de que a minha frieza prá com o tema morte venha de nunca ter perdido um ente querido, claro que já, todavia convivo com a morte desde cedo, minha mãe tem paúra de defunto, meu pai não sabe nem cagar sozinho (precisa de platéia, apôio moral... sei lá), enfim, desde sempre, alguém morreu? Lá íamos nós, eu e papai, papai e eu, ele verde, eu curiosa. Rendeu-me, confesso, o apelido de “caça-defunto”, mas criança é cruel mesmo, e, dentre as tantas opções, a exemplo de “forma-de-fazer-capeta” nos anos de extra-oral, eu era "caça-defunto" feliz da vida.

Nota esclarecedora: meu pai é uma lady dos anos trinta, daquelas que desmaiam prá doar sangue, sobem no sofá por causa de barata e só não gritam porque não pega bem, mas é cabra macho, do tipo que mata a cobra e mostra o pau, ainda que segurando na ponta dos dedos e com aquela cara de “vou vomitar”... Aliás, aprendeu o gosto de pescar “de vara” comigo, mas não bota a mão em minhoca nem por decreto... vai entender... coisa de macho...

Ah, por conta da veia etílica de papai, combinada com a proximidade de seu boteco preferido (que álcool e volante não combinam até ele já sabia), também já fui “freio-de-mão”.

Mas... como diria Clarice, segundo Vinícius (ou outro?)... “voltemos a falar da morte”... acabou o recreio.

Perdi meu primeiro ente próximo, nem querido nem desquerido, não deu tempo de definir isso, antes dos sete. Meu avô. Morria de medo dele, e ainda tenho, certas noites, medo. Era a cara do Monteiro Lobato (já escrevi sobre isso antes...) se feiúra, pr’O poeta, já era broxante, aos seis anos de idade, além de broxante ela é assustadora, ainda mais morta em cima da mesa de jantar... oh idéia mais besta essa coisa de velório em casa!... Nunca mais comi naquela mesa... (eu hein?)... lá vinha o porco, maça na boca, e lá via eu o finado, algodão no nariz... Feliz ano novo? Só se for prá você, começando com essa “vista”... responderia eu, não tivesse sido criada como se nascida em mil-e-oitocentos...

Não me julgue tão mal assim, o defunto não era santo, muito embora, usualmente, a certidão de canonização venha no pacote, junto com a de óbito, tipo pague uma leve duas.

Mas, santo ou não, sou de um mundo onde se pedia “a benção”... ao invés de bom-dia, boa-tarde, boa-noite, era “Bença vô?”, Bença vó?, “Bença mãe?”, “Bença pai?”. Mas também sem exageros, acabava por aí... aí tinham umas tias... queriam porque queriam... perguntei prá mamãe:

- “Eu tenho que?”

- “Não, ter não tem, mas...” (depois do “mas” deletei da memória, se é que ouvi)

- “Beleza...”

E foi mais ou menos assim que eu virei capitalista... “Quer ‘bença tia’? Um real!” (ou cruzeiro, ou cruzado, ou pataca... nenhum nunca valeu nada mesmo) só lembro que era verde e não era dollar.

Dinheiro? Lembrar - lembraaaar, lembro do “Cabral” (vou lá perder meu tempo com menos de mil?), o do bigodão... será que eu vou morrer sem saber se aquele homem tinha dentes?... Grande amiga, finado maridão... mesmo bigodão... um dia não aguentei mais, perguntei... perdi a amiga e ainda não sei se Miguelito tinha dentes...

Dalila Langoni
Enviado por Dalila Langoni em 15/04/2008
Reeditado em 21/04/2008
Código do texto: T946240