Feijão no dente

Há quem vá dizer que o amor se descobre quando os olhos se encontram. Há quem diga que só se descobre quem ama quando se perde. Há ainda quem garanta que o amor é descoberto com a convivência, ou com a falta. E há outras diversas opiniões concordantes e divergentes a respeito da descoberta do amor. Cada um tem a sua, ou empresta de algum poeta ou cantor.

E eu tenho a minha.

Descobri hoje que amo minha noiva. Hoje, na hora do almoço. Com toda sua família em volta, com todos os sons e cheiros dos almoços de domingo. No meio de tudo isso, eu descobri que a amo.

O pai dela obviamente senta-se na ponta da mesa. A mãe, ao lado direito dele. Minha noiva ao lado direito da mãe – por conseguinte, a minha frente -, e o caçula ao meu lado direito, imitando minha maneira de segurar o garfo, e lembrando a todos que eu não sei jogar futebol (ter jogado a bola por entre minhas pernas quando eu entrei na casa o faz pensar que eu sou um retardado e que ele é a versão juvenil e sóbria do Garrincha) .

Voltando ao pai, ele está ao meu lado direito, procurando minuciosamente um defeito meu do qual possa zombar, sem fazer idéia do quanto eu me previno a isso.

Eu me mantenho quieto até que falem comigo, e só me sinto na hora de agir quando passam mais de três minutos sem que toquem no meu nome ou dirijam-se a mim.

"- Poderia me passar a salada, por favor?"

Durante todo meu sufoco, minha noiva me sorri discreta e maliciosamente, com códigos não-verbais que só nós conhecemos. Códigos esses que, por conta de risadinhas inoportunas, imagino que o pirralho está começando a decifrar.

Eu disfarço e olho no fundo do prato, do copo, ou algum detalhe insignificante da toalha de mesa, numa tentativa desesperada de me desvencilhar do olhar sacana de minha noiva.Ela me provoca de uma maneira que faz eu querer agarrá-la naquele mesmo momento, abraçá-la como um louco e correr com ela nos braços dali pro quarto mais próximo, que por acaso é o do velho, não sem antes dizer:

" - O senhor me dê uma “licencinha”, pois eu to com uma vontade incontrolável de comer a sua filha, e tem de ser já."

Ele me mataria, certamente, mas eu estaria feliz. Afinal, teria morrido por alguns minutos de deleite e prazer com a pessoa que eu amo. Certo?

...

Aí é que ta... Esses momentos me fizeram pensar em algo que eu sempre tive medo: será que estou prestes a me casar com a mulher certa? Será ela a mulher a quem eu amo, e será essa mulher capaz de me fazer um homem feliz, por mais que os anos passem, mesmo sabendo que o casamento pode me privar do que eu mais prezo nessa vida: a minha liberdade?

Que ela é a mulher que mais me tara não há dúvidas, mas o que me aflige é não saber com qual das minhas duas cabeças ela mexe mais.

Daí em diante, o restante do almoço foi esse tormento de me flagrar sem saber o que sinto, enquanto ela continuava sorrindo pra mim e passeando os dedos de seus pés por minhas coxas, que chegavam a tremer a ponto de quase balançar o refrigerante dos copos.

Nesse momento, de certa forma sentia que a amava, mas ainda faltava-me a certeza, a segurança de poder dizer sem mentir a mim mesmo e a qualquer um que quisesse saber: sim, eu a amo! E com ponto de exclamação.

Ela seguia sorrindo, mas aí eu já quase não percebia. A mesa começou a ser tirada. Meu quissá futuro sogro começou a fumar e tomar café, e eu, alheio a tudo, continuei pensando, enquanto vozes ecoavam na minha cabeça:

" - O arroz estava bom?"

" - Ahn?"

" – O arroz, meu anjo, tava gostoso?"

" – Ah, o arroz, claro, estava maravilhoso, Dona Suzete! Quando sua comida não está maravilhosa? Quando Olivia e eu nos casarmos, vou querer a senhora cozinhando pra nós.”

" - Engraçadinho!"

" - Você não tem vergonha mesmo! Não bastasse levar minha filha ainda quer a minha esposa! Vê se se enxerga, rapaz!"

" - Papaaai!"

Será que isso foi mesmo uma brincadeira como ele quis mostrar? Esse sorriso amarelado pela nicotina me dá essa garantia?

" - De maneira alguma. Eu tenho certeza que a Olívia será uma excelente dona de casa, assim como a mãe.”

“ – Ah, é. Vai sonhando, nego.”

" - Dessa você se safou. Que tal um dominó? Suzete, tire a mesa!”

(Mas que delicadeza).

" - Mas é claro, eu ia sugerir isso agora.” (na verdade não)

Engana-se quem acha que essa conversa sem nexo me fez parar de pensar no motivo mor da minha angústia.

É essa mulher com quem eu quero acordar o resto da minha vida? São esses os avós que eu quero pros meus filhos? É com um sogro desses com eu quero almoçar incontáveis domingos da minha vida?

Eu acho dominó tão insuportavelmente chato quanto ter que recolocar palitos de volta em um paliteiro. Ela merece que eu agüente isso por anos a fio?

Até então eu realmente não sabia. E eu estava disposto a qualquer custo a determinar isso naquele domingo quente na casa dos meus possíveis encalços eternos (pois não é segredo pra ninguém que família de esposa é, geralmente, não uma pedra, mas um Grand Canyon no caminho para a tranqüilidade).

Pedras na mesa. Olivia e eu versus Suzete e Ramiro. Uma garrafa de café, um cinzeiro e um maço de cigarros do meu sogro compõem o restante do cenário.

Começa a partida. O velho sai com a sena. Eu sou o próximo. Não tenho nenhuma sena, passo. A velha tem: sena com terno. Olivia tem um terno, dobrado, e põe em jogo. A pedra fica torta, mas ninguém ousa mexer; a peça é essa. Ela sorri pra mim, e eu descubro: eu a amo!(Com ponto de exclamação)

Os cabelos estão penteados com um capricho que faria um desavisado pensar que ela se apronta pra um jantar de gala. Pensamento esse que seria desfeito quando o desavisado notasse que ela usa camiseta, um pequeno – e suculento - shorts e havaianas. Brincos e a aliança no dedo direito são os dois únicos adornos mais significativos. E ela está linda. Não mais linda do que costuma estar. Simplesmente está linda.

E é quando eu o vejo, impune e debochador. Discreto, porém facilmente notável com um olhar mais perspicaz. Eu o vejo, ela o tem. Ela o tem e não sabe. Ela tem um feijão no dente!

Pro caso de alguém ter chegado até esse ponto, talvez eu precise ser mais claro, e o farei:

Nada, absolutamente nada deprecia mais uma pessoa que um feijão no dente.

Você jamais respeitaria seu chefe se ele te desse uma comida de rabo (mesmo daquelas que até o porteiro do prédio vizinho fica sabendo) com um feijão no canino piscando pra você.

Se você assistisse a uma palestra notando que o orador possui de um feijão colocado simetricamente entre o canino e o siso, muito provavelmente, ao final, teria que perguntar a alguém qual foi o tema abordado.

Portanto, ver um sorriso de uma boca "afeijoada" - e, ainda assim, não ter vontade de rir ou vomitar – é, pra mim, a prova mais concreta de que se trata de nada mais além de amor.

Porque se esse feijão não realça o seu charme, ao menos não me fez ter vontade de correr pra longe dali e nunca mais voltar. Isso prova que eu a amo, e que os preparativos para o casamento podem seguir.

Foram algumas horas da mais cruel dúvida pra que eu me desfizesse de qualquer receio. É ela quem eu amo, é ela quem eu quero, mesmo que me venha sorrindo com a denúncia do almoço ainda dentro da boca.

O velho está alheio à minha descoberta e joga o terno na mesa.

Eu me jogo em cima da mesa, beijo Olivia como num filme (talvez um filme soft-porn pudesse proporcionar um beijo daqueles em cima de uma mesa), e derrubo o terno do meu (agora sim) futuro sogro. Derrubo todas as outras pedras da mesa, e quase derrubo a mesa. O velho grita; a velha grita. Eu penso em gritar, mas volto atrás. Peço mil desculpas, e digo ter visto um bicho peçonhento qualquer no pescoço dela - até então ela não havia gritado, mas aí o faz. A velha volta a gritar, o velho encerra o jogo, se levanta e sai da cozinha esbravejando e me condenando ao fogo do inferno.

Slash
Enviado por Slash em 06/01/2006
Reeditado em 22/09/2009
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