Papo com meu travesseiro: sobre dança e caligrafia

Antes de dormir, costumo estabelecer uma relação, já rotineira por sinal, de diálogo com o meu travesseiro. Toda noite, assuntos amorosos, profissionais, acadêmicos, ou de qualquer outra ordem são debatidos aos sussurros, para não incomodar as paredes, janela e outros objetos de meu quarto. Bom conselheiro, aliás, é meu travesseiro. Já me ajudou a me livrar de cada uma...

Foi em uma dessas conversas aparentemente banais, que cheguei, ou melhor, chegamos a uma pertinente conclusão: no fatídico dia da distribuição dos dons, eu passei longe (leia-se muito longe) de duas filas, a da dança e a da caligrafia.

Verdade! Não sei dançar, nunca soube. Minhas pernas são desobedientes, meu quadril é rijo feito uma rocha e meu ritmo segue um compasso próprio, aquém do que exige a música. Até gostaria de aproveitar esse momento de revelação, para pedir desculpas às garotas que pisoteei em algumas tentativas importunas de simular o que seria uma dança. Perdões. Mil perdões. Não foi por mal.

Confesso que não conseguir realizar um “dois pra lá, dois pra cá”, o ritmo mais primitivo que existe, às vezes me incomoda, até porque sei que minha Marília (que nada tem a ver com a de Dirceu) gosta destas danças.

Mas tudo bem, não é nada pra se desesperar. Há outras maneiras de compensar minha arritmia, e sinceramente (que não me levem a mal os dançarinos e adeptos dessa prática), acredito que dançar é uma maneira bem estranha do ser humano se expressar.

Já no que diz respeito à caligrafia, o problema é bem mais grave. Devo estar sendo castigado e repreendido pelos meus punhos, pelas bobagens que tive escrevendo nos últimos tempos. Só pode ser. O fato é que a cada dia que passa, minha letra fica mais “garranchada”, epigráfica, indigna de qualquer elogio, seja ela escrita na forma cursiva, caixa-alta, ou caixa-baixa. O que me intriga, é que antes ela certamente era mais bonita, caprichada, pelo menos no início do caderno.

Escrevo tão horrendamente, e digo isso com um pesar que vocês nem imaginam, que minhas pobres letrinhas não passam de caricaturas do que seriam letras de verdade. Ainda bem, que nunca tive que conquistar nenhuma menina por causa delas. Sempre evitei as cartas...

Não sei se meus tendões e articulações responsáveis pelos manuscritos se atrofiaram devido ao vício e comodidade da digitação. Não sei. Mas é uma hipótese que não deve ser descartada. Fábio! Como é que um “R” pode parecer com um “S”, um “J” com um “I”, um “G” com um “J”, um “C” com um “A” e um “H” com nenhuma das 26 letras do nosso alfabeto?! Pergunto-me. Também me pergunta o travesseiro. Não faço a mínima idéia, respondo.

Sempre fui taxado de desorganizado e de descuidado, só por pedir emprestada uma caneta por dia. Ocorre que depois de algumas horas de uso, elas simplesmente desaparecem. Coitada da minha amiga Gisele... Foram tantas canetas surrupiadas... No entanto, em meio a essa filosofia apregoada em torno da minha capacidade de escrever símbolos não satisfatórios aos olhos e compreensão humanos, eu descobri o que acontece. Não, eu não perco as canetas. Elas é que fogem de mim, envergonhadas por serem tão maltratadas e terem suas tintas, aquilo que possuem de mais valioso, tão mal aproveitadas.

Sorte sua leitor, e também minha (mais minha do que sua), dispormos do advento computador, onde a “Times New Roman” se encarrega de traduzir de forma assimilável as bobagens crônicas que invento e insisto em reproduzir.

Mas enquanto minha letra não melhora, e tudo indica que não vai melhorar mesmo, prefiro acreditar no que dizem os filósofos: “é nas piores caligrafias, que estão os melhores conteúdos”, tudo bem, eu sei, nenhum filósofo disse isso. Mas poderiam ter dito vai.

Agora basta de discutir sobre o que não há remédio. Para desencargo de consciência, amanhã vou até a vendinha perto de onde trabalho e comprarei um lindo caderno de caligrafia, e se questionado o porquê pelo vendedor que julgo se chamar José, direi que é para minha irmã. Porém duas coisas já estão decididas. Primeira: não vou parar de escrever, mesmo que isso agrida aos olhos e os manuais da boa caligrafia. Segunda: só vou tentar dançar novamente quando for estritamente, indispensavelmente, surpreendentemente necessário e mesmo assim, por livre e espontânea pressão.

No mais é isso leitor. Agora, me dêem licença, tenho uma conversa a terminar...

E você meu travesseiro? Como foi o seu dia?