MOEDAS QUE VIRARAM PURPURINA.

Outro dia caminhava solitário pela Av. Paulista. Acho que o relógio digital marcava meia-noite, ou quase isso ou mais. Até que para o horário a avenida não estava vazia. Pessoas indo e vindo. Andávamos rápido. Não olhávamos para os lados, não nos percebíamos, o que é uma característica muito comum em pessoas que vivem em cidades caóticas como a cidade de São Paulo. Todos ocupados. Ansiosos por chegar sei lá onde. Meu destino, um bar. Um amigo me esperava. Estava atrasado. Havia passado a última hora lendo um artigo de uma revista estrangeira de medicina a respeito do prolongamento do pênis e suas conseqüências. As técnicas empregadas para aumentar o tamanho e volume do dito cujo são espantosas. Injeções de gordura e silicone, corte do ligamento suspensor, entre outras mais. Tais procedimentos cirúrgicos estão a disposição dos que andam insatisfeitos com o comprimento e diâmetro do melhor amigo do homem. O que me chamou atenção é que todas, absolutamente todas, são condenadas pelos médicos “sérios”. Métodos para aqueles que têm esperança de que com o aumento do pênis a qualidade de vida melhore substancialmente. Sem nenhuma garantia futura, sujeitos a novas intervenções cirúrgicas e, até mesmo a amputação do falo. Imagino o desespero do camarada. Doutor, o senhor acha que eu vou ser uma pessoa feliz e realizada depois da cirurgia?, devem perguntar. E o carniceiro responde: “Trato de casos semelhantes ao seu há mais de vinte anos. Meus pacientes passaram a ter uma vida plena, normal. Pau pequeno não satisfaz a mulher dos dias de hoje. Elas querem um “legume” entre as pernas! E o seu será o maior de todos, garanto. Se não estiver satisfeito após a cirurgia, devolvemos o dinheiro (ou amputamos o seu pênis)”.

Sinônimo de potência e força. Quanto maior, mais poderoso serei! Acho que está tudo bem comigo no que diz respeito a este assunto. Confesso que, em meus desvarios mais íntimos, penso como seria ter o pênis do tamanho de um obelisco. Cem metros de altura, tocando as nuvens. Mulheres viriam dos quatro cantos do planeta em romaria, com fotos, broches, camisetas, velas, cantorias, prestariam homenagens a ele, que estaria ali, sempre ali, imóvel, inabalável, firme e detentor de uma visão panorâmica. Onipotente, onipresente, caridoso e misericordioso. O “Grande Pênis”. Seriam erguidos alteres a ele. Seguiriam pedidos, juras, promessas, orações e oferendas... Um oráculo! O monolito das Américas! O guardião das fêmeas desamparadas. Risco de amputação? Pombas, entrem numa Sex Shop e comprem um consolo. Reinventem-se. Tudo é permitido. Como dizia um amigo: “Se num dá de um jeito, tem que dar de outro”. Não que eu concorde inteiramente com ele, mas...

Fazia frio na rua. Acho que uns oito graus ou menos. Ventava. A sensação térmica era de mais frio. Faltava uns quatro ou cinco quarteirões até o bar onde estava meu amigo. Fazia realmente frio e eu não havia me agasalhado propriamente. Encostados nas muretas dos prédios comerciais alguns mendigos e vendedores de colares e suas famílias e cachorros e todos também com frio, sem dinheiro, sujos e com fome. Eles viajam pelo Brasil, pelo mundo. Conhecem de tudo um pouco. Se ajeitam pelas ruas até altas horas da noite em cantos estratégicos. Dá-se um jeito para tudo. As crianças dormem amontoadas sob as mercadorias, os cachorros servem de cobertor, os pais conversavam a respeito das dificuldades, das vendas que andavam em baixa, de um amigo que chegou do Peru e precisava de uma força pra se descolar pela cidade, reclamavam do ponto e do valor dos materiais que usam para confeccionar suas peças... E eu simplesmente passando por ali com frio. Era a minha única preocupação naquele momento. Cabeça vazia. Frio e pressa. Continuei caminhando. Atravessei a rua e pude ouvir parte da conversa de um casal de “bichinhas” modernosas. O Paulo é bipolar?, foi só o que pude ouvir isso. Confesso que fiquei com vontade de saber mais a respeito. Mas eles atravessaram a rua na direção oposta a minha e eu estava realmente atrasado. Bipolar, pensei? Agora somos todos bipolares? A todo momento escuto que fulano, ciclano e beltrano são bipolares. O mundo é bipolar! Fulano anda se comportando de maneira esquisita, ah, ele é só pode ser um bipolar! Me lembra urso polar. Alguém que mora num lugar longe e frio. Que besteira, que observação mais ignorante. Continuei caminhando.

Lembrei-me de uma música de Franz Schubert, An Die Musik, assim que avistei um pedinte recostado num telefone público. Passei a escutar a música mais alto. Aquela pessoa afastou-se do telefone e parou exatamente na minha frente. Ficamos nos olhando, um de frente para o outro, como dois irmãos há muito separados. Ele tinha um prato de plástico branco desses de festa de aniversário de criança cheio de moedas em uma das mãos. Ele estendeu o braço na minha direção com se fosse me pedir um trocado, mas não o fez. Silêncio. O braço estendido no ar. Eram muitas moedas. Em seguida prestou reverência a mim, igual a prestada aos reis. Curvou a cabeça gentilmente, dobrou um dos joelhos e recuou uma das pernas. Ficou imóvel naquela posição. Fiquei sem saber o que ele pretendia com aquilo. Talvez fosse iniciar um número circense. As pessoas que passavam pararam e começaram a nos encarar, como se fossemos uma dupla de atores representando em plena Av. Paulista, à meia-noite, debaixo de um frio cortante, algum trecho de alguma peça. Fiquei desconcertado, porém curioso. Foi aí que para minha surpresa, aquele homem se recompôs, ficando ereto me olhou fundo nos olhos e sorriu. Um sorriso de poucos dentes, fraterno e satisfeito. O que aconteceu em seguida pode parecer invenção da minha cabeça, mas não. Ele atirou para o alto o prato de plástico com todas aquelas moedas. Por reflexo acompanhei-as espalhando-se pelo céu escuro. Como refletiam às luzes dos prédios comerciais brilhavam feito purpurinas - há um momento "mágico" que antecede a entrada do ator no palco, quanto ele está na coxia, atrás das cortinas, observando sua platéia, e o pó fino dessas cortinas sobe e ao entrar em contato com a luz dos refletores parece transformar-se em purpurina. E é como se a partir daquele instante estivesse rompida toda e qualquer a lógica do mundo real, e o ator como que por encanto encarnasse sua personagem e pudesse representar seu papel. Tudo aconteceu tão rápido, não tive tempo de processar o que acontecia diante dos meus olhos. Schubert tocava nos meus ouvidos no mais alto volume, e o que fora talvez todo dinheiro arrecadado por aquele homem em um dia, um mês, um ano, em toda a sua vida, formava um desenho brilhante no céu. Um desenho magnífico. Um arco-íris metálico, reluzente. Foram alguns segundos. Quando as moedas tocaram o chão espalhando-se pela calçada, ficamos todos em silêncio. O pedinte começou a dançar freneticamente um frevo. Dançava figorosamente. Era conhecedor daquele ritmo e de seus passos. Dançava liberto, maltrapilho, feliz. Eu assisti a tudo imóvel. Inesquecível, repito. Atravessei sua parede imaginária sem olhar para trás. Silêncio absoluto. Nem carros, passos, Schubert, nada, como se estivesse ficado surdo. Jamais esquecerei o olhar daquele homem. Olhar de quem viu muito, de quem talvez tenha tido outra história, outra origem que não as ruas, mas que talvez tenha deixado-a para trás assim como deixou que aquelas moedas se perdessem pela calçada. São tantas histórias que se perdem pelas ruas, tantas vidas... Aquele homem, jamais saberá que o que ele fizera repercutirá internamente em mim. Eu... Eu jamais saberei seu nome. E a vida segue em frente misteriosa, inusitada, impiedosa. Lembrei-me do artigo da revista de medicina. Das maneiras de mutilar o falo, de transformá-lo, aumentá-lo, “turbiná-lo”. Não consegui estabelecer paralelo entre o que havia lido e recém presenciado. Não era possível, não fazia sentido. Estava surdo, anestesiado. Uns com muito e “pouco”, outros com nada. Continuei caminhando.

Assim que coloquei os dois pés no bar pude ver meu amigo pagando a conta. Me escondi detrás de uma coluna. E levantou-se e partiu. Não quis beber aquela noite. Ele provavelmente iria se queixar de algo, eu também, provavelmente. Dei meia volta. Segui para casa pelo mesmo caminho. Contei algumas pedras portuguesas do chão. O pedinte já não estava no mesmo lugar de antes. Nem sinal das moedas. Estavam lá os vendedores de anéis, colares, pulseiras, suas companheiras e seus filhos e os cachorros... Todos amontoados. Conversavam a respeito das dificuldades, das vendas que andavam em baixa, de um amigo que chegou do Peru e precisava de uma força pra se descolar pela cidade, reclamavam do ponto e do valor dos materiais que usam para confeccionar suas peças... Fazia muito frio aquela noite.