Todo amor se acaba com um motor batido

     Sou um amante de carros. Completamente apaixonado por essas belezinhas automobilísticas. Passo horas admirando modelos, lendo revistas especializadas e sonhando com máquinas belas e potentes. A paixão é tão grande que gera ciúmes diversos, por isso tenho medo de que a mulher amada me peça, um dia, para escolher entre ela e os carros. Ficaria em uma sinuca impossível de sair, na saia justa mesmo. E pior ainda seria dar uma resposta. Imaginem a cena:

     “— Não dá mais para disputar sua atenção, querido. Ou esse maldito carro ou eu!
     Silêncio.
     — Querido, ou o carro ou eu?
     Mais silêncio.
     — Porra! Será que você pode parar de encerar essa merda pela milésima vez e falar comigo?
     — Depois de polir ele vai ficar lindo, não é?”

     O carro para o homem não é somente um meio de transporte, é a extensão de o seu próprio ser. Um pedaço projetado pela engenharia que, em muitas vezes, diz quem ele é. Na busca por “status”, o desejo por um modelo de marca famosa e série limitada é comum a todos, desde o jovem ao homem feito. Desfilar pelas ruas da cidade com seu novo automóvel faz bem ao ego masculino, tão bem quanto o quarentão que exibe sua namoradinha de 18 anos. Se juntar os dois então, teremos a vida perfeita.

     Talvez por isso, cuidamos tão bem de nossos amados carros. Facilmente dizemos uma série de nãos, inventamos diversas desculpas, até mesmo doenças que nos põem de cama por tempo indeterminado, para não varrer a casa, lavar o banheiro, arrumar a cama, o que seja; mas para pegar a mangueira e ficar horas sob um sol escaldante molhando o carrinho, não há mal que nos impeça.

     — Querido, você não estava passando mal? — pergunta a esposa.
     — Estava não, meu bem — responde o marido, levando a mão ao estômago e fazendo cara de dor — estou ainda.
     — Então o que é que você está fazendo aí?
     — Nada não.
     — Como nada não?
     — Sabe como é, eu estava lá na cama, sentindo dor. Vim pegar um pouco de sol, senti calor e resolvi molhar a cabeça. E já que a mangueira estava na minha mão, eu não iria deixar o carro ficar com vontade, né?
     — Hã!? E a louça que pedi para você lavar?
     — Ai que dor! Acho que, assim que terminar aqui, vou me deitar um pouquinho.
     — Puta que o pariu — resmunga ela, batendo a porta da cozinha.

     Posso facilmente comparar o carro a uma mulher, com a diferença de que, por incrível que pareça,  gastamos mais e muito mais felizes com nossos carros. Se falta dinheiro para renovar o guarda-roupa, comprar melhores iguarias culinárias, arrumar as necessidades da casa, vamos empurrando como dá, privando-nos de várias coisas para, assim que a situação desapertar, dar um jeito. Mas se o carro apresenta um mínimo sinal de problema, corremos ao mecânico e assinamos o cheque sem pensar duas vezes, mesmo que o valor do conserto ultrapasse o nosso ordenado. Afinal cheque especial existe para isso, não é mesmo?

     Não há maior prazer do que, num sábado de sol, passar o dia inteiro lavando a lataria com água e sabão especial. Encerar delicadamente cada parte como se fosse o corpo de uma magnífica mulher. Retirar o pó do interior com cuidado redobrado para não riscar o painel. Aplicar silicone nas partes plásticas para revitalizar o que foi gasto. Horas de deleite, impagáveis momentos em que o dono e o carro comungam como um casal perfeito, sem brigas, discussões ou insultos, somente o amor de um com o outro como bons amantes que são.

     Dirigir é uma terapia que custa só o preço da gasolina. Eu, quando tenho um problema, não penso duas vezes, corro à garagem e pego a estrada. Abro os vidros e deixo o vento entrar. Ouço o som dos pneus no asfalto e me esqueço da vida e dos males que carrego em minha cabeça. Quando regresso, não tenho mais nada para me perturbar, um pouco fica em alguma curva, outro no pisar no acelerador, outro na troca de marchas e o último problema, na arrancada forte que faz o coração disparar.

     Amo os carros, mas, às vezes, o afeto não é retribuído. Todo amor se acaba com um motor batido.

Alberto da Cruz
2008, 03 de maio

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