OLHAR VAZIO

Aquele olhar parece fitar um ponto cego... É ele quem me chama a atenção.

Sinto um arrepio e observo o restante. Uma jovem mulher...Rosto com sulcos profundos, caquética, cabelos em desalinho, pés do chão, roupas rotas, mais parece uma fotografia em preto e branco.

Olhando mais amiúde, observo que ainda tem uma beleza por baixo de toda dor, todas as desgraças a ela impostas.

Creio que nesse momento, já não sonha mais com flores, entrar na faculdade, festas, já não há vaidade, o príncipe encantado há tempos deixou de ser príncipe e encantado, menos ainda.

Quantos anos terá? Imagino que uns 30 no máximo.

Se fosse pedido para que ficasse parada como estátua viva, não faria de forma tão perfeita como nesse momento, olhar vazio, perdido, olhos sem brilho, sem definição, cheios de nada...

Ouso questionar-me intimamente: Em que pensa? Será que crê em Deus de amor e misericórdia? Levanto e passo em sua frente... Nem piscou como em transe, continuou a olhar para o vazio.

Olhos perdidos no tempo... No espaço de uma praça... De repente... Começa a cair um chuvisco. Ela apenas abraça as pernas e continua a olhar o nada.

A chuva agora cai em pingos mais fortes, a moça, com as suas roupas já coladas ao corpo, continua sentada, pega um pedaço de papelão, coloca na cabeça e só. Como passará a noite sem roupas secas? Pergunto-me. Estou com o coração angustiado...

Enfim, a chuva diminui tudo fica molhado, de repente... Vejo um cão aproximando-se daquela pessoa, cheira sua mão, e ela, como que saindo de um transe, agacha-se e o abraça... Um sorriso aparece no rosto marcado pela dor, como a dizer: Estou viva, tenho um amigo...

Ambos caminham agora para uma marquise, lá, ainda há espaço seco. Deitam-se no chão, o cão encosta o seu pelo ao corpo molhado para aquecerem-se. Ambos precisam continuar a viver, estão sozinhos, mas nessa noite, a presença dos dois juntos é mais que necessária, é questão de sobrevivência...

Aos poucos, outros como ela vão chegando e se aglomerando no chão da marquise, encostam-se para fugir do frio...

Estou a uma pequena distância do grupo. Penso nas minhas roupas secas, no estômago alimentado, na cama limpa que me espera... Contraste de vida. Pergunto: O que tenho feito para mudar esse quadro? Eu mesma respondo: Muito pouco, preciso despertar para o trabalho voluntário (“...Quem fizer a um desses pequeninos, a mim faz”; “a fé sem obras é morta”, diz as sagradas escrituras).

De repente... Surge do nada várias pessoas, são franciscanos com pão e sopa para distribuição aos necessitados, eles entregam para cada um uma porção de comida, depois de tudo, rezam, essa é a forma que eles encontram para ajudar.

São quase dez horas da noite. A chuva passou, desço a rua e vou para o hotel, mas com certeza, aquela cena nunca vou esquecer, preciso fazer algo depressa para não encontrar outros olhares assim.

Penso que se um dia, lá diante de Deus, essa moça me encontrasse e por um instante nossos olhares se cruzassem e ela me perguntasse: - O que fizeste por mim?

O que eu responderia?

Centro de Fortaleza-CE, em 25 de abril de 2008.

Adi
Enviado por Adi em 03/05/2008
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