A DANÇA DO DEMÔNIO

Na Montes Claros da minha infância não havia asfalto nas ruas, exceto num trecho de cerca de dois quilômetros da atual avenida deputado Plínio Ribeiro entre os atuais bairros Esplanada e Nossa Senhora de Fátima. Não chamávamos essa avenida de avenida e sim de “o asfalto”.  Na poeira das ruas sem revestimento as minhas supertições adquiridas da convivência social ganhavam asas.

Era comum ouvir alguém citar como referência “perto do asfalto”, “antes do asfalto” ou “depois do asfalto”. As ruas do centro da cidade eram calçadas de pedras ou paralelepípedos; as dos bairros eram de terra batida. Os bairros mais afastados do centro eram a Malhada Santos Reis (bairro Santos Reis) e o Novo Horizonte (Delfino Magalhães). Vivi minha infância passando pela Vila Ananias (Santa Rita), Morrinhos, Cintra e Ipiranga, para depois voltar ao Santa Rita e continuar até os dias atuais.

Durante os meses de seca a poeira tomava conta das ruas dos bairros e dos inúmeros terrenos baldios, muitos deles transformados em campos de futebol improvisados. A maior parte dessa poeira era resultante dos ventos, sobretudo dos redemoinhos; havia poucos veículos automotores circulando. No período de maio a setembro (às vezes até outubro) o que mais se via eram as imensas colunas espiraladas de poeira misturada com papeis e outros materiais leves.

Uma crença supersticiosa do meio em que vivi alimentava a idéia de que os redemoinhos eram nada mais nada menos do que o demônio dançando em rodopios e piruetas em meio à poeira – possivelmente essa crença decorre de uma analogia em virtude da pronúncia popular dos termos demônio e redemoinho, respectivamente pronunciados como “demonho” e “redemonho” ou “redemunho”. Acreditava-se que havia uma maneira de se ver a figura do demônio, sob a forma humana (estilizada): bastava atirar três pedrinhas de sal ao centro do redemoinho. Conforme a crença, apenas quem atirasse as pedras de sal veria o diabo dançando.

Convivi com um grande dilema que não fora resolvido durante toda a minha infância. Por um lado ansiava por atirar as pedras de sal a um redemoinho para confirmar se era verdade o que diziam, e por outro temia que fosse verdade e que eu acabasse vendo de fato o demônio...

Cresci e passei a conhecer um pouco de Marx, Sartre, Freud, Reich, Foucault, Bakunin, Proudhon, Kropotnik, Malatesta, Roberto Freire e muitos outros que ajudaram a construir a minha maneira de relacionar com o mundo. Deixei de acreditar em demônios e outros seres sobrenaturais.

Tornei-me ateu e de tendência anarco-comunista, mas sempre que vejo um redemoinho, mesmo sabendo que se trata tão-somente de um fenômeno eólico, decorrente do encontro de correntes contrárias de vento, sinto algo que me lembra uma ponta de angústia e, em seguida, lembro da ansiedade que por alguns anos alimentei em função das crendices de minha infância. Creio que as imagens imaginárias do demônio dançando em meio à poeira pelas ruas, embora não tenham hoje um sentido lógico para mim, ainda estão guardadas em algum ponto do meu eu.