E agora que não tenho mais medo,( por que já gastei todo o que tinha) como é que eu faço pra recomeçar a vida?

Estive me olhando, com seriedade inaudita, no pouco visitado espelho de meu quarto. Sou, na verdade, uma criatura que se olha pouco, mais por desleixo que por modéstia. Visto ai qualquer negócio e saio ou fico, depende. Não tenho roupa específica pra rir nem pra chorar, acho até interessante quem sabe dividir assim, tão minuciosamente sua indumentária.

MAs, hoje me olhei por desfastio, procurando displicentemente os vestígios dos litígios que empreendi com a vida e os anos; por incrível que pareça acheio-os, todos. Não casualmente estavam todos alí. As marcas fundas do riso, das lágrimas - que não sei avaliar quão abundantes e nem quais - das preocupações infundadas, das surpresas beligerantes, das batalhas vencidas com tanques, das guerras findas pela ação de um espirro.

Olhei esse meu rosto antigo, que sabe se abrir num sorriso com os cantos da boca virados pra baixo, um sorriso meio ao contrário, um sorriso invertido de quem está para sempre triste. Eu conheço um rosto muito, muito jovem, que tem um sorriso igual ao meu - lastimavelmente - não adianta que "montemos" sorrisos radiantes; nossos sorrisos reais tem um "quê" de dolorosa alegria, como se a gente tivesse sido feito sem direito a ser feliz.

Bem, bem...isso já são conjecturas demais, excessivas elocubrações...vai ver é apenas a combinação dos músculos da face, que quando sorrimos, eu ou ele, só conseguimos sorrir invertido e nada mais. Truques da anatomia humana.

Bem, o fato é que olhei para meu rosto e percebi que, apesar da minha cabeça está totalmente encanecida, ainda idéias velhas não lhe penetraram o miolo, e, embora hoje, em marcha lenta, não perdi a capacidade de racionalizar, de me indignar, nem a liberdade de ser. O que eu aprendi mesmo foi a me calar, ou falar aqui, onde ninguém que não interessa saber disso que estou dizendo tem acesso; por que os que me perseguem e caluniam fazem-me o favor caritativo de, além de tudo que lhes falta como pessoa, não possuir uma única grama de senso literário em seus corpos habituados à abjeção da fofoca e do mal-dizer. Graças a Deus!

Olhei para mim e vi os mesmos olhos adolescentes que sempre viram a vida com medo! Um medo tão imenso, tão imenso, que, não havendo por perto outro material - como? não havia espaço - foi dele mesmo que me servi para construir casa, abrigo, proteção, arma, alimento, alegria. Foi do medo que me alimentei e nutri, sobrevivi a ele, com ele, amparada nele, usando-o como faca, facão, canhão, metralhadora, corda, bóia, barraca, balsa, cama, colchão, travesseiro e cobertor. Eu não tenho mais medo. Eu gastei ele todo.

E agora que não tenho mais medo, por que já gastei todo o que tinha, como é que eu faço pra recomeçar a vida?