MEU OUTONO EM ROMA.

Era outono em Roma, mesmo que não houvesse nenhuma importância nesse detalhe. Roma é feita de monumentos, de pedras, de ruínas e de história, muito mais do que de folhas amareladas ao vento.

Antecipadamente, eu sabia, que, nesta narrativa, não poderia utilizar o recurso das relações entre o homem e o tempo, tão comuns quando se trata de descrever antigas civilizações. Por isso, apresso-me a esclarecer, não há movimento nessa história, não há ação, não há enredo; há apenas o subjetivismo mesclado com poesia, a sutileza da afetividade e da ternura, a geografia de sentimentos. Nesse sentido, Outono em Roma, foi uma das narrativas mais significativas que já escrevi. E que já vivi.

Portanto, saiba querido leitor, o que aconteceu comigo em Roma, na histórica Praça de São Pedro, não ganhou projeção em minha mente histórica, mas ainda assim ficará dentro de mim, em algum lugar muito íntimo, onde só o essencial acontece e permanece, intocável, para sempre.

Eu estava em Roma, mas poderia estar em qualquer outro lugar do mundo antigo, porque o que contava para mim eram os vestígios, os tesouros guardados a sete chaves em cada monumento devastado pelo tempo e recriado em minha imaginação, essa completamente filosófica. Não me interessava a Roma histórica, mas a Roma dos romanos. Ou melhor dizendo, os romanos de Roma. Para onde teria ido toda aquela gente? Qualquer pessoa, desprovida de introspecção e sensibilidade, poderia responder: "para o cemitério." Óbvio. Mas, as pepitas de ouro não são encontradas na superfície. Portanto, eu cavava fundo dentro de mim mesma, olhando ao redor, sem ver a paisagem.

Sempre fui fascinada pelas civilizações passadas, muito menos por motivos geográficos, e muito mais por motivos existenciais, por temperamento, por melancolia, por saudosismo, sei lá porquê. Por causa disso, pisar em solo romano representava um instante redondo e mágico, onde eu me perdia nos labirintos do tempo, completamente alheia aos sons, aos cheiros, às cores, às velas que crepitavam, ao tumulto das gentes, ao agitar de lenços brancos que se moviam em cadência, no outono de Roma, no Domingo de sol, na Praça de São Pedro, ao meio dia.

Esse é o horário em que o Papa aparece, saúda a multidão e, quando tudo acaba, você respira tão cansado, mas pode finalmente contar para a posteridade: “fui a Roma e vi o Papa.”

Era outono em Roma, mas a estação do ano, a magnitude do cenário e a elegância da temporada, perderam encanto para o fato subjetivamente completo e acabado que se havia instalado dentro de mim, de maneira que, se de travertino era o conjunto arquitetônico, se de pedras milenares se cobria o chão, e se outros outonos envelheciam monumentos eruginosos, nem me dei conta dessa plenitude de antigüidades. Nem me dei conta de que, afinal, pela primeira vez, eu estava em Roma, terra de velhos sonhos e antigas saudades, cujas avenidas sempre desembocam no berço comum da humanidade.

O berço era meu e nele eu me embalava, quando um fato aconteceu. Um fato que me fez ficar entusiasmada, sorridente e enternecida. Um fato que abriu as brumas do passado para fazer surgir o aqui e o agora do presente.

Afinal foi isso o que aconteceu em Roma que vale a pena relatar para você: Preste atenção, mas faça isso com o coração. Só com o coração você conseguirá entender. Caso não consiga, dê-me o benefício da excentricidade.

Sensibilidade é o que lhe peço. Com sensibilidade, talvez você possa entender porque fiquei repentinamente entusiasmada, porque o cansaço desapareceu, porque os meus olhos perscrutaram horizontes vencendo a barreira da massa humana aglomerada em devoção piedosa, porque meu sorriso se abriu, porque esqueci que estava em Roma, e também esqueci que fazia outono, e era domingo sem economia, na Praça de São Pedro, ao meio dia.

Apresso-me a esclarecer que embora tenha sido nesse horário, que o balcão- janela se abriu e a multidão estremeceu em frenesi, num segundo que se eternizou no “oh” coletivo das milhares de vozes peregrinas, não foi esse acontecimento que me seduziu.

Na verdade, o que me seduziu, levou-me para o lado oposto da religião, da história, da geografia, da política, do existencialismo e da filosofia.

Quero deixar claro: o que me levou para o lado oposto da religiosidade não foi o cansaço de uma longa viagem, a profissão de outra crença, a proteção da Palavra de Deus que até ali me guardara de alguns equívocos coletivos.

Aliás, aproveito a oportunidade para confessar que eu alimentara, furtivamente, o desejo de ver o homem, e não o mito. Porque o homem era merecedor – reconheço- de minha admiração, sustentada pela longevidade produtiva, pela capacidade persuasiva, pela memória lingüística, pela exercício da política conciliatória, pelo discurso socialmente correto, pela leveza do gesto largo que causava impacto quando beijava o chão. Na verdade, eu queria vê-lo. E se possível fôra, queria cruzar meus olhos com os olhos daquele polonês azul, que, penso eu, outros horizontes alcançaria para além do ouro, do brilho e da púrpura.

Quero que você saiba que fosse o que fosse, aquilo que me absorveu completamente, e desviou minha atenção, tão de repente, bem no momento em que a música sacra soou, assinalando o meio dia, pedindo o empenho da devoção e a marca da contrição, teria que ser grande e envolvente, teria que ser dadivoso o suficiente para roubar o precioso átimo de segundo que coroaria a espera de defuntas gerações.

Porque naquele lugar, naquela situação, eu não era, simplesmente eu. De repente, minha individualidade se perdera e, ali, milagrosamente, eu me tornara uma pessoa coletiva, representando a galeria ancestral, a herança atávica de uma família espanhola, prisioneira, durante séculos, nos porões de idolatria, cercada de cruzes por todos os lados, de imagens dolorosas, de chagas renitentes, de mantilhas negras, de terços, de promessas, de recompensas e penitências, de velas e ramos, de ladainhas sussurradas pelos séculos dos séculos...

Além dessa constatação metafísica, aquele instante - eu sabia - fornecer-me-ia argumentos para muitas observações críticas e impiedosas, matéria profana para a defesa de íntimas convicções, conquistadas após muitos anos de erronia religiosa. Dali eu sairia armada para incertas e imprevisíveis batalhas teológicas e ganharia munição que faria explodir trincheiras, em muitos quintais devotados a Baais.

Pois foi quando eu assim me encontrava, investida dessa responsabilidade espiã, foi quando a filmadora recebeu a última regulagem para a distância que me era imperativa pela pompa e circunstância da situação, foi nesse exato momento, que esqueci da circunstância, perdi a pompa e me surpreendi completamente à mercê daquele ser tão interessante, tão doce, tão dócil, resgatador de sentimentos que me subjugaram completamente, fazendo-me esquecer Roma, o outono, o Domingo, o Papa, a Praça de São Pedro, o meio dia, o império Romano em sua forma mais piedosa.

Eu o vi, pela primeira vez, através da câmera. Tomei um susto mas foi um susto bom. Dei-lhe um “close” que me foi fatal e, no instante seguinte, já me movia, irremediavelmente, no centro da massa estéril, alheia ao rito cerimonial que, com, ou sem, a minha participação, acontecia. No meio da massa humana, eu era toda líquida em amor e candura. Mas ele era branco e caramelo.

Enquanto a multidão olhava para cima, e explodia em flashs e exclamações extasiadas, eu olhava para baixo e me movia silenciosamente, registrando cada um de seus movimentos macios e ondulados.

Estava cada vez mais perto. E quanto mais eu me aproximava, geograficamente, do objeto de minha atenção, mais fascinada me sentia pelo seu jeito displicente e abandonado, pela sua ternura feita de pêlo e rabo.

Era camponês, como sua dona. Algo no seu latido me fazia ver que também não tinha erudição. Melhor, pensei; facilitaria nosso entendimento. Facilitaria lhe dizer que em terras verde e amarela, ele tivera um sósia que, se logo na chegada, capturara meu coração, na partida, arrebentara a minha alma: Há pouco, havia morrido meu cão.

O biótipo do cão romano era o mesmo: Vindos de Pequim, ambos cruzaram fronteiras, conservando, na cara grave e chata, no olhar esbugalhado, a estereotipia herdada de seus ancestrais.

Mesmo saudosa, eu pensava, equivocadamente, que nosso papo seria curto, feito de afagos e complacências, de amores e condolências. Porque afinal, “toda criação geme e chora, aguardando o dia da redenção....” Portanto, gemeríamos juntos, e juntos latiríamos toda a nossa indignação por esse mundo decaído que rouba afetos (caninos) sem prometer garantias ou recompensas póstumas.

Pensei que seria apenas isso: Na rápida sessão de fotos nos festejaríamos mutuamente, derrubando as barreiras entre o homem e o cão, entre o Brasil de muitas raças e a Itália de muitas tradições. E nesse retrato completo e acabado revelaríamos mais que a ternura entre a mulher brasileira e o cão de Pequim, revelaríamos a universalidade da criação e da criatura, a fragilidade da existência em suas formas mais e menos aprimoradas.

Eu não contava com o que viria depois. Depois, a sua dona, num italiano musicalmente cadenciado, que me trazia Rita Pavone fresquinha à memória, perguntou-me, candidamente, se eu iria adentrar ao recinto da Basílica De Roma, para assistir ao santo ofício e eu, inocente, respondi que não. E justamente quando eu pensava que amar é ver um cão abanar o rabo e partir, perdi-me no equívoco: Os guardas de Roma não permitiriam que o animal sacrificasse nos seus inúmeros altares e assim: quem cuidaria de Vossa Fidelidade, o cão? Quem...?

Não sei se me confundi no labirinto fonético de um idioma desconhecido ou se enveredei por um sistema de subserviência político geográfica agravada pelo meu estado de invasão territorial. O que sei é que concordei, e durante exatos 60 minutos fui guardiã de um depósito sagrado de afetos: Nino, o pequinês de pêlo macio e rabo ondulado, esteve gravemente entregue aos meus cuidados, enquanto “Rita Pavone” dentro da Basílica, celebrava o seu ritual sagrado.

Confesso que pensei em sequestrá-lo. Até imaginei a ação. Em câmera lenta, vi-me percorrendo as avenidas, desembocando no túnel do avião com toda ansiedade de delinqüente primária; na bagagem, o cão; no coração, a euforia de ressuscitar dos mortos aquele que latira.

Mas entre a fantasia e a realidade, minha primeira providência prática foi escolher uma cantina que recebesse o homem e o animal, sem nenhuma perplexidade, sem reprovação. Descobri que, em Roma, cão é companhia para todos os solitários, ninguém estranha o envolvimento sentimental. Pedi uma massa e um filé. Comi a massa e reparti o filé. Na verdade, repartimos mais que isso... repartimos a fragilidade existencial. E enquanto nossos olhares se cruzavam, eu poderia jurar que ele me distinguia com a terna severidade de quem compreende dores mais densas.

Quando os prelados de Roma entoaram o último amém ao santo ofício e a turba começou a encher novamente a praça, antes silenciosa, era chegada a hora do adeus.

Quase fiquei triste. Nino, o cãozinho, e todos os sentimentos inusitados que produzira em mim, permaneceriam gravados, para sempre, na dimensão poética da minha memória. Mas a última imagem, no entanto, tornou-me ainda mais pensativa: como um menino espia o mundo, pêlos ao vento, sol na cara, olhos rotundos, um cão, na janela de um velho Fiat azul, no meio da fila dupla que se movia lentamente, esbanjava a segurança muda e feliz de estar em casa... seu território, sua casa, sua gente, seu carro, sua bandeira, sua Pátria. Na verdade, a Itália, o Vaticano, o Papa, a Fontana di Trevi, a Piazza de São Pedro, o Coliseu, tudo era seu.

Foi então que compreendi, como nunca em minha vida, a dimensão épica da existência mais comum: em Roma, como no resto do mundo, os cães e os homens retornam para casa, abençoados pela placidez do outono, pelo sol de cada dia, pela paixão de existir sem grandes elucubrações filosóficas, sem entender que, das paredes de pedras seculares, dos subterrâneos do tempo, das catacumbas milenares, os que foram homens, um dia, saúdam seus pares e lhes dão passagem.

Naquele exato momento, enquanto meus olhos percorriam a trajetória de um velho Fiat azul, mais que o carro eu alcancei, de relance, a substância da vida feita de retalhos do imponderável.

No último segundo antes da esquina, descobri, iluminada, que se o prosaico, se constrói com a rotina, não há exigência para o cenário: o palco é o mundo lá fora, e as luzes são as que Deus criou para iluminar o espetáculo.

Em Roma, eu vi um cachorro pequinês, que latia como um labrador inglês, que roía osso feito um fila brasileiro. Vi também o homem, esse ser universal tão óbvio em todos os idiomas, vivendo com a resignação dos mansos e movendo-se com a fidelidade do cão, entre todos os afetos.

Sem matéria profana, a Piazza de São Pedro tornara-se, subitamente, tão doméstica quanto o meu quintal. E foi olhando em volta, familiarizada, que eu me lembrei, no tardio da hora, que era perfeitamente possível vir a Roma, ver Deus, o homem, o animal, a natureza, o mundo ... e não ver o Papa!

Roma, ano 1995 -