"Alta Auto-Ajuda" =Crônica=

Eu me lembro como se fosse hoje, mas foi anteontem, que acordei disposto, decidido mesmo, a seguir todas as regras de um livro de auto-ajuda que li, de graça, recentemente. Sou um tanto quanto supersticioso com relação a livros: acho que os que leio de graça são sempre melhores, e quando se trata de auto-ajuda, mais eficientes. Bem, voltando ao assunto, abri os olhos e pensei de cara: hoje é o primeiro dia do resto de minha vida. Disseram no livro que tal obviedade nos ajuda a viver melhor. Tentemos.

Saí da cama e quase que o faço com o pé esquerdo, mas me lembrei a tempo, levantei a perna cuidadosamente e bati com o pé direito no chão. Tinha que começar meu primeiro dia do resto de minha vida com o pé direito. Comecemos, pois.

Antes de mais nada, café, cigarro, privada, barba e banho. Nesta ordem.

Minha mulher saíra meio atrasada para o trabalho e o café era da véspera. Semi-intragável. Mas foi assim mesmo uma meia xícara.

Era o último cigarro do maço e estava com um furinho no meio. Tampei o furinho com um dedo e fumei com certo desconforto e dificuldade. Coisas bobas, sem importância. Nada para estragar o belo dia que começava.

Alguma visita da véspera havia urinado na tampa do vaso e isso estava visível. Saí do banheiro, fui até a área de serviço, peguei o “Veja”, limpei a tampa do vaso, sequei-a com papel higiênico e usei o vaso demoradamente, tranqüilamente, com um bom livro de Patrícia Melo em mãos(Elogio da Mentira, ótimo). Não seria um pequeno detalhe, uma tampa mijada, que empanaria o primeiro dia do resto de minha vida.

Terminada a primeira etapa no banheiro, parti para a barba. O “Prestobarba” ainda estava em sua embalagem original e eu pressenti que ele correria ligeiro e suave pelo meu rosto, deixando-o lisinho como bunda de nenê ou peito de velho. Ledo engano. Saiu raspando e arrancando alguns fios apenas. Minha mulher e meu caçula devem ter usado meu aparelho e camuflado, guardando-o na embalagenzinha original. Cambada de...Mas isso também não era motivo para estragar o primeiro dia do resto de minha vida. Limpei o rosto com a toalha e desci até a padaria para comprar outra lâmina.

Ao voltar para casa o elevador social havia enguiçado e eu tinha comigo apenas a chave da entrada principal. Subi a pé até meu apê.

Barba feita, entrei no banho. Ou melhor, entrei debaixo do chuveiro, torci a torneira e o jorro gelado me pegou em cheio. Olhei pra cima e vi que estava marcado “inverno”, mas não esquentava. Nisso o telefone tocou.

Saí molhado do banheiro, corri até o telefone e atendi minha mulher:

-Amor, a resistência do chuveiro queimou hoje de manhã. Você compra logo outra?

– Compro, meu bem. Fazer o que, né?

Saí para comprar outra resistência, mas saí tranqüilo, sossegado, sem xingar como nos velhos tempos (leia-se dia anterior). Afinal era só uma resistência, coisa baratinha.

- Qual é o tipo da resistência de seu chuveiro, senhor?

- Olha, não deve ser muito resistente não. Volta e meia ela queima...

- É preciso saber se é de molinha ou dessas enroladinhas. O senhor pode levar uma e não servir. Qual é o tipo do chuveiro?

Quis ser engraçadinho:

- É branco e todo furadinho embaixo.

O vendedor foi simpático e riu da bobagem.

- O senhor precisa me dizer a marca e o tipo do chuveiro. Melhor ir até sua casa e verificar.

Lá fui eu de novo escada acima. Agora nenhum dos dois elevadores funcionava. Estavam em revisão.

Anotei a marca do chuveiro e o modelo e voltei à loja.

- Infelizmente, senhor, para esse chuveiro não temos a resistência certa.

Quase, por pouco, muito pouco, eu fiquei puto. Mas lembrei-me a tempo que aquele era o primeiro dia do resto de minha vida. Saí da loja sorridente e preparei-me para andar vários quarteirões até a loja que ele, amavelmente, havia me indicado. A loja que certamente teria aquele tipo de resistência. Não tinha.

Na volta, a chuva veio forte e fria e me pegou desprevenido no meio do caminho.

Entrei em casa ensopado e corri para o banheiro sentindo que a bexiga estava pra estourar de tanta urina. A porta estava fechada e ouvi barulho de chuveiro funcionando.

- Quem está aí?

- Eu, pai.

- Tomando banho frio, filho?

- Não, pai. Foi só recolocar a ponta da resistência e ele está esquentando de novo.

Sequei-me no meu quarto e aguardei pelado a minha vez de tomar banho. O banheiro de empregada não me agrada. Lá é só o meu “pensatório” e fumódromo.

Água quente aos montões, ensaboei-me todo, taquei shampoo nas sobras de cabeleira e...senti um cheiro de coisa queimando. Acabei às pressas meu banho usando a água que agora descia gelada.

- Pai, agora a resistência queimou de vez. Você já comprou outra?

Eu já ia responder que aquela merda não se encontrava em lugar algum, mas lembrei-me a tempo de que agora era um novo homem:

- Não, meu filho. Ainda não comprei.

- Foi bom não ter comprado, pai. A mãe comprou uma há tempos e deixou na gaveta do armário do corredor. Deve ter esquecido que comprou. Espere um pouco que eu troco.

Não esperei. De qualquer maneira já havia tomado meu banho, feito minha barba, ido à privada, e agora poderia fazer o que ainda tinha pela frente: levar alguns livros ao Correio para serem entregues com urgência urgentíssima a um professor; fazer meus jogos da mega-sena e conferir o resultado da Federal; pegar meu computador na assistência técnica; buscar o scanner novo que encomendei; retirar algum dinheiro na casa lotérica com meu cartão da CEF; pegar um livro raríssimo que o dono do sebo da praça guardou pra mim e mais algumas coisinhas.]]

Os Correios haviam entrado em greve naquele exato dia;

O sistema da casa lotérica havia caído naquele minuto e não havia previsão de volta. Parecia que a coisa era geral;

Meu computador não havia ficado pronto. Faltava uma peça e estava pra chegar;

O scanner que encomendei não havia chegado por causa da greve dos Correios;

Sem sistema, não pude sacar dinheiro na lotérica;

O vendedor do sebo se enganara e vendera a um outro cliente meu livro raro. Sentia muito.

A todo momento eu me lembrava que levantara com o pé direito e que aquele era o primeiro dia do resto de minha vida. Só aquilo importava. Eu tinha que enxergar apenas o lado positivo das coisas.

Ao voltar para casa os elevadores estavam prontos. Entrei no social e ele parou entre o primeiro e o segundo andares. Coisa de somenos importância. Em menos de uma hora e meia conseguiram liberar-me daquela escuridão total.

Em casa, sozinho, liguei a televisão. Minto. Tentei ligar a televisão e ela ficou ali, morta, paradona. Mexi em todos os controles, troquei as pilhas do controle-remoto e nada. Uma hora depois meu filho chegou, afastou o móvel, enfiou a tomada na tomada e me pediu desculpas por ter desligado sem me avisar. Estava testando um aparelho que comprou.

De maneira alguma que aquilo me irritaria. Dirigi-me ao meu quarto, tirei a roupa, estiquei-me em minha cama e fiz alguns exercícios de relaxamento. Um minuto de relaxamento e senti uma tremenda dor no saco. Uma de minhas cadelas, feliz por me saber em casa, invadiu o quarto e pulou em cima de mim. Ou melhor, de meu saco. Ouvindo meu grito de dor, voou para a área de serviço e não voltou mais.

Meu filho saiu, desceu pelo elevador, chegou até a rua sem problema algum e me ligou de lá.

- Pai, uma dona foi atropelada aqui em frente e eu estou com medo de olhar. A roupa dela parece a da mãe, pai...

Apavorado, quase corro pelado para a rua, mas me lembrei a tempo e a muito custo consegui vestir uma bermuda e descer voando escada abaixo.

Atravessei a multidão empurrando muita gente e vi, aliviado, que não era minha mulher. Voltei para casa ensopado. Pela segunda vez. Desta vez, quase nu.

Subi correndo as escadas, certo de que o elevador estava implicando comigo, e encontrei minha mulher abrindo a porta da área de serviço:

- Tá louco, amor? Andando pelado na chuva?

Aliviado por vê-la bem, enchi-a de beijos.

- Tá louco mesmo....Fiz umas comprinhas no supermercado, por isso me atrasei um pouco. Como foi seu dia, bem?

Quase que me lembrei que era o primeiro dia do resto de minha vida, mas com minha mulher sou sempre franco:

- Foi uma merrrrrrrrrrrrrda, paixão. Nem te conto.

No dia seguinte bati três vezes o pé esquerdo no chão, pedi que meu dia fosse péssimo, mandei o otimismo à merda e comecei o dia.

Enviei os livros. Achei outro livro igual àquele raro. Retirei dinheiro na CEF sem problema algum. Meu computador ficou pronto. Meu scanner chegou. O chuveiro funcionou direitinho. E à tarde ainda ganhei um troco razoável no jogo do bicho, que eu não fazia havia muito tempo.

Agora eu só me levanto com o pé esquerdo. E pisando forte.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 14/05/2008
Código do texto: T989616
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